Pedro Ribeiro*

“A Doutrina Social da Igreja é de direita ou de esquerda?”: eis aí o exemplo de uma pergunta muitíssimo mal colocada – em primeiríssimo lugar, porque a resposta que se dará a ela vai depender sempre dos interesses ideológicos do que responde.
Se o sujeito notar, por exemplo, que a DSI se opõe à legalização do aborto e da eutanásia, que ela defende a noção de família natural, que ela enfatiza a legítima defesa e a responsabilidade doa criminosos por seus atos, que ela entende que a propriedade privada é um direito natural e que o mercado é um elemento bom e positivo da vida social, tudo que ele notar será verdade – e então parecerá que a DSI é de direita.
Por outro lado, o sujeito poderá notar – e será igualmente verdade – que a Igreja defende que o mercado, para ser justo, deve ser regulado pelo Estado, que a propriedade privada só é legítima se cumpre sua função social, que a reforma agrária é algo perfeitamente legítimo, que os pobres devem ser cuidados pelo Estado com maior atenção do que aqueles que tem posses, que o bem comum deve sempre prevalecer sobre os interesses individuais, que é lícito estatizar setores estratégicos da economia e que uma rebelião armada pode ser perfeitamente justa, em dadas circunstâncias – e então parecerá que a perspectiva política cristã é de esquerda.
Qual será então a verdadeira resposta à pergunta? Ora, nem uma nem outra. Na verdade, a doutrina social cristã não é nem de direita nem de esquerda, isso não porque ela seja incoerente ou esquizofrênica, mas sim porque suas raízes históricas são mais profundas.
Ora, a distinção direita-esquerda não é atemporal, mas sim histórica e até relativamente recente. Ela denota, de modo geral, duas visões opostas em relação à Modernidade (mundo liberal-capitalista-secularizado, surgido na passagem do século XVIII para o XIX). O “direitista” é, grosso modo, o sujeito que vê esse mundo moderno de modo positivo e deseja preservá-lo. Já o “esquerdista”, grosso modo, é o sujeito que se opõe a esse mundo, considerando que a modernização não se consumou plenamente e que é preciso radicalizá-la, substituindo-a por uma sociedade futura, concebida como mais perfeita. Percebam aí que as duas posições pressupõem um conteúdo histórico em comum: a Modernidade liberal-capitalista-secular.
E a DSI? Bem, a DSI deita raízes num mundo e numa mentalidade muito anterior a isso aí. De fato, por mais que sua elaboração tenha se dado no século XIX, suas raízes e seus princípios vêm de muito antes: de Santo Tomás, dos Santos Padres, do Antigo Testamento, da própria filosofia clássica e, em primeiro lugar, de Cristo.
Dizer que a perspectiva política cristã é de direita ou de esquerda é diminui-la, enxovalhá-la e fazer serviço do Capeta. Ela está muito além disso e é muito maior do que isso.
Um cristão, naturalmente, pode ser “de direita” (se por isso se entender que ele é social-liberal, ordo-liberal, democrata-cristão ou algo assim, e não libertário, liberal propriamente dito ou anarco-capitalista). Do mesmo modo, um cristão pode ser “de esquerda” ( se por isso se entender que ele é trabalhista, social-democrata ou solidarista, e não comunista, socialista em sentido próprio ou anarquista).
Tudo isso é possivel como ênfase ou como posição pessoal, uma vez que a DSI não é um pacote ideológico fechado, uma receita de bolo para resolver todos os problemas, mas princípios gerais de orientação, que permitem múltiplas e distintas aplicações concretas. Se os princípios gerais estão a salvo, portanto, as ênfases distintas são legítimas, bem como as respectivas diferenças de opções eleitorais.
Tudo isso pode. O que é triste é ver irmãos xingando e excomungando uns aos outros em matérias que nem são de fé apenas por um ou outro terem posições diferentes, todas lícitas e abrigadas na doutrina.
O que não faz a politização do espírito! O que não faz! Valha-me Deus!
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* Pedro Ribeiro é graduado em filosofia pela UERJ e trabalha como professor da disciplina nos âmbitos do Ensino Médio e de pré-vestibular.