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As patologias gêmeas do Pelagianismo: uma leitura ratzingeriana

por Leandro Cunha*

“Que estranha atitude é considerar que o serviço cristão já não vale a pena se o denário da salvação pode ser obtido mesmo sem ele.” J. Ratzinger, Ser Cristiano, p. 33.

Em seu animoso texto publicado sob o levante da santidade nas vias da atualidade, Francisco retoma, entre outros, um termo já esquecido pelos populares, relegado às estantes da história eclesiástica: o Pelagianismo*. Segundo o pontífice, as proposições pelagianas de irrupção da vontade e de sobreposição da individualidade falsificaram a santidade cristã e roubaram da experiência da fé o seu genuíno essencial, abandonando-a à autorreferência e, com ela, à morte. Em paralelo, Joseph Ratzinger escrevia, já em meados dos anos 90, sobre a virulência do pelagianismo deste tempo manifesto em sua dupla face: burguesa e piedosa. As patologias gêmeas do pelagianismo, segundo Ratzinger, estão a enfraquecer a constituição eclesial e permanecem, não obstante sua remota origem, atualíssimas em sua periculosidade.

Ao pelagianismo burguês está orientada a mentalidade acidiosa, calculista em sua origem. Segundo esta modalidade de pelagianismo, os altos ideais para os quais são chamadas as criaturas estão de tal modo inacessíveis que a evitável fraqueza que se manifesta é tolerada em vias de aceitação de condição ou, em termos de acídia**, é fadada à vertigem das alturas do chamado. Assim, “se Deus realmente existe, e se Ele de fato se preocupa pelas pessoas, não pode ser tão terrivelmente exigente como o descreve a fé da Igreja”, ao passo que não sendo pior que os outros, o pelagiano burguês crê que “as pequenas fraquezas humanas não podem ser realmente tão perigosas como se diz”. Ergue-se neste horizonte a idolatria egóica e, com ela, a autossuficiência. A este respeito, a fé cristã, segundo Ratzinger, remedia-se na generosidade do bem que, tão bem expresso por Santa Teresa do Menino Jesus, não admite no amor o cálculo. Diz a santa: “Viver de Amor é dar, dar sem medida,/ Sem reclamar na vida recompensa./ Eu dou sem calcular, por estar convencida/ De que quem ama nunca em pagamento pensa!”.

É sob a tutela do pelagianismo burguês que cresce daninha a autocomplacência em sua tacanhez. Nela, o homem não é mais daquilo que é e sua escatológica origem, o fim para o qual se move, não é mais que um mínimo. Desta patologia alimenta-se o rebanhesco enquanto povo do qual não se espera – e para o qual não se pode exigir – nada que não seja o ordinário. Aqui, entre o tolerável pecado venial e o abominável pecado mortal, movem-se as escolhas.

Nos piedosos, o pelagianismo manifesta-se com o mesmo pragmatismo em seus cálculos, mas neste atrelado aos afiados dentes da arrogância. Neste sentido, a arrogância pietista alarga os horizontes da autossuficiência. É na veste piedosa que se empunham os rigorismos de método e, em mesma medida, o desdém à postura penitencial e arrependida.

“[…] eles querem ordem pura: não perdão mas apenas recompensa, não esperança mas segurança. Mediante um sistema rijo e rigoroso de práticas religiosas, por meio de orações e ações, pretendem criar para si mesmos um direito à bem-aventurança. O que lhes falta é a humildade essencial a qualquer amor, a humildade de poder receber o que nos é dado, e mais do que aquilo que temos merecido e atingido. A negação da esperança em troca da segurança, com a qual nos confrontamos, repousa na incapacidade de suportar a tensão da espera por aquilo que virá e de abandonar à bondade de Deus.” (Mirar a Cristo, p. 85)

A ambivalência da postura pelagiana neste tempo provoca novamente a fé cristã a confrontar-se. Onde, afinal, estão depositadas as esperanças cristãs? Ratzinger sustenta que a resposta às feridas causadas pelo binômio pelagiano acima expresso no seio da Igreja encontra-se na retomada do dado fundamental da fé no Deus de Jesus Cristo, formulado magistralmente no texto joanino: Deus é amor (cf. 1Jo 4,8). Aqui, longe das esferas comuns de interpretação, a definição evangélica arrasta o coração pelagiano de seus ardis, devolvendo-o às aspirações evangélicas, inspiradas pelo Espírito, gravadas na memória (anamnesis) e orientadoras da consciência (conscientia).

O burguês, no seio de sua conformidade, é arrancado da morte e trazido para fora, como Lázaro (cf. Jo 11,43), das amarras desta morte que torna apático o coração do homem às maravilhas de Deus. A mística sacramental, neste sentido, conduz a fé a este maravilhamento que, não obstante a elevação do homem, contempla o rebaixamento de Deus (Deus Caritas Est, 13) e, a partir dele, torna-nos capazes de mais que o ordinário. Na contemplação do Deus-Amor, armada sua Tenda entre nós, toda a história reconhece sua transfiguração e, consequentemente, sua verdadeira fisionomia.

Sob a luz do Amor, a fé vê devolvida a si seu semblante: “nós reconhecemos que também precisamos ser ajudados” (Ser Cristiano, p. 47). O pelagianismo piedoso, achada sua raiz arrogante, vê-se impelido a ir além de si e assiste ruírem as certezas sobre as quais ergueu sua própria Babel. A desesperança, filha destamaladiecatholique***, dá lugar ao coração – que ao Coração fala, conforme a intuição do beato Newman em seu lema. Não mais movido pela vã casuística, o cristianismo que se deixa plasmar nesta verdade encontra as razões de sua alegria e delas dá testemunho.

Para além de toda mesquinharia na qual aprisionam-se os corações pelagianos, resta-nos apenas um desejo: ser amigos de Deus. E, também, um único temor: abandonarmos esta amizade.

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* Pelagianismo é o nome pelo qual se denomina a definição herética dada por Pelágio, teólogo bretão, que depositava sobre a iniciativa humana todo o crédito sobre a virtude. Famosa é a polêmica entre Pelágio e Agostinho a este respeito, em que pese a defesa intransigente do bispo de Hipona sobre a primazia da Graça.

** Acídia é um dos sete pecados capitais, atualmente conhecido como preguiça (em uma infeliz redução conceitual), em que o homem é tomado de desânimo e fastio pelo que há de espiritual, negligenciando o bem e a prática da religião.

*** Maladiecatholique é um termo cunhado pelos psiquiatras franceses do século XIX para tratar de uma espécie de neurose centrada no quarto e sexto mandamentos e que, por sua pedagogia deturpada, condena o indivíduo à incapacidade de se autodesenvolver livremente.

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Textos de inspiração:

A fé de Ratzinger: A Teologia do Papa Bento XVI, Tracey Rowland.

Deus Caritas Est, Papa Bento XVI.

Gaudete et Exultate, Papa Francisco.

Mirar a Cristo: Ejercicios de Fe, Esperanza y Amor, Joseph Ratzinger.

Ser Cristiano, Joseph Ratzinger.

*Leandro Cunha é bacharel em Teologia

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