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Sobre homens e mulheres

Pedro Ribeiro*

                    O então padre João Paulo II com algumas mulheres.

 

De todos os movimentos políticos contemporâneos, o feminismo é aquele que, provavelmente, oferece um desafio mais complexo para a tradição cristã. Isso acontece, em primeiro lugar, por tratar-se de um fenômeno bastante difuso, com muitas correntes internas e variantes. Mas penso, antes de tudo, que o desafio principal encontra-se no fato dos movimentos feministas usualmente apresentarem em conjunto dois tipos de demandas que são bastante diferentes: de um lado, exigências práticas e concretas (luta contra a cultura do assédio, denúncia de condições desiguais no mercado de trabalho, ataque à objetificação da mulher, defesa de uma distribuição mais equitativa das tarefas no lar, etc.); de outro, uma dura crítica ao que tradicionalmente se entendeu em nossas sociedades por “feminilidade” e a defesa, mais ou menos explícita, de que as distinções comportamentais entre homem e mulher são meramente construções sociais e que não há, portanto, nem em termos gerais, um modo de ser naturalmente masculino e um modo de ser naturalmente feminino.

Ora, é bastante compreensível que, para muitas pessoas,exista uma profunda conexão entre esses dois tipos de demanda. De fato, segundo uma narrativa bastante disseminada, foi precisamente a crença de que existe um modo de ser essencial da mulher que justificou a sua inferiorização na sociedade. O fato, porém, é que, ainda que isso seja verdadeiro do ponto de vista histórico – deixemos a questão em suspenso -, nem por isso pode-se dizer que exista um vínculo necessário entre as duas questões e que ambas façam parte de um mesmo problema. Ao contrário, trata-se de temas fundamentalmente diferentes, uma vez que, no primeiro caso,o que está em jogo são situações particulares e específicas do nosso contexto social, enquanto no segundo o que está em jogo é a própria natureza humana. Cria-se, pois, um vespeiro quando de superpõem as duas questões, e passa-se a correr, como de fato se correm, dois grandes riscos para os cristãos. O primeiro, de quem, identificando-se com muitas das reclamações e denúncias concretas do movimento, acaba por abraçar uma noção do “ser mulher” que é incompatível com o Evangelho. O segundo é o daqueles que, em nome de criticar a de fato inaceitável ideia de que não há diferenças naturais entre homem e mulher, rejeita por completo o que o feminismo demanda de concreto. Nesta matéria, pois, como em tantas outras, é necessário que o cristão tenha uma posição mais completa, superior às paixões ideológicas de parte a parte, e, seguindo o preceito paulino (1 Ts 5,21), seja capaz de examinar tudo e reter o que for bom.

Faça-se, pois, discernimento, em primeiro lugar, no plano das questões concretas. Aqui, antes de tudo, cabe lembrar que a defesa da igual dignidade entre homens e mulheres não apenas não contraria o Evangelho, como é uma exigência dele, exigência à qual, infelizmente, as sociedades cristãs historicamente existentes nem sempre foram plenamente fieis. De fato, como intuiu belamente São João Paulo II, a opressão do homem sobre a mulher não é um desejo de Deus, mas uma maldição derivada do pecado original (“Disse também à mulher: (…), teus desejos te impelirão para o teu marido e ele te dominará” [Gn 3,16]), que, assim, se não é plenamente extirpável do mundo, certamente não faz parte dos planos de Deus e por isso deve ser combatida pelas cristãos. Do mesmo modo, ensinou Santo Tomás que Deus, conforme o relato do Gênesis, tirou Eva da costela de Adão a fim de simbolizar a igualdade entre homem e mulher, “Pois, nem esta deve dominar aquele e, por isso, não foi formada da cabeça; nem deve ser desprezada pelo homem, numa como sujeição servil, e por isso não foi formada dos pés”. Por fim, mais claramente não poderia ensinar São Paulo: “Já não há judeu nem grego, nem escravo nem livre, nem homem nem mulher, pois todos vós sois um em Cristo Jesus” (Gl 3,28).

Acaso isto significará que tudo aquilo que normalmente propõem as feministas no campo das concretudes (lembrando que se trata de um movimento bastante diverso) é por isso bom e justo à luz do Evangelho? Certamente que não, e nem mesmo à luz da razão, sobretudo em questões morais de primeira grandeza como, por exemplo, a questão do aborto, em que está em jogo o mais fundamental de todos os direitos, que é o direito à vida. O que cabe, pois, neste temas é, antes de tudo, uma avaliação caso a caso, refletida, honesta, sem instintos “memísticos” e na qual, abusos da teoria do lugar de fala à parte, é necessário, em primeiro lugar, ouvir as mulheres, uma vez que nós homens, de fato, inúmeras vezes não temos a menor noção dos problemas e constrangimentos cotidianos pelos quais elas passam. Curiosamente, neste processo, não poucas vezes se encontrarão coletivos feministas, sobretudo associados ao chamado feminismo radical, defendendo bandeiras historicamente advogadas pela Igreja, como a crítica à indústria pornográfica, a denúncia da erotização infantil e a promoção de métodos naturais de planejamento familiar.

Por fim, no que diz respeito à questão da existência de uma feminilidade natural, aí sim é necessária uma intransigência firme, ainda que caridosa. Com efeito, por mais que exista um amplo aspecto evidentemente social e historicamente condicionado nas distinções homem-mulher e por mais que muitos possuam certamente uma visão enormemente tosca e estereotipada do que seja “masculinidade” e “feminilidade”, a redução total dessas diferenças a uma construção social é algo absolutamente insustentável, tanto do ponto de vista da fé, quanto do da razão. De fato, para mencionar apenas o que é mais claro, seria no mínimo tolice imaginar que as diferenças biológicas anatômicas e sobretudo hormonais entre homem e mulher não tenham qualquer impacto sobre seus respectivos temperamentos e comportamentos.

Naturalmente, as distinções entre o “modo de ser masculino” e o “modo de ser feminino” não são regras absolutas, para as quais não há exceções ou para as quais toda exceção é uma anormalidade doentia. Em verdade, homem e mulher não são duas espécies distintas, mas apenas duas faces de uma mesma espécie, de modo o que há aí não são diferenças categóricas, absolutas, mas duas tendências dominantes, expressas de modo mais ou menos enfático nos diversos indivíduos e que se encarnam ou perfazem de inúmeras maneiras nas mais múltiplas sociedades. Trata-se de tendências, contudo, e é sobre isso que o cristão e a cristã não podem tergiversar, que, na sua essência, fazem parte do projeto de Deus para o ser humano, devendo, pois, ser cultivadas e acolhidas como um dom, nunca negadas de forma irresponsável.

Enfim, que não se confundam alhos com bugalhos; que não se falte nem com a justiça para com as mulheres nem com a fidelidade para com Deus.

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* Pedro Ribeiro é graduado em filosofia pela UERJ e trabalha como professor da disciplina nos âmbitos do Ensino Médio e de pré-vestibular.

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