*Robson Oliveira
A simplicidade e a honra, a austeridade e a humildade, a honestidade, a laboriosidade, a alegria de uma vida comum e sem exageros, essas são características dificilmente rejeitadas pelas pessoas que leem O Camponês. De certo modo, essa vida escondida e singela é o que move muitos de nossos leitores. Contudo, um paradoxo se apresenta: se essas virtudes interessam a tantas pessoas, se o reconhecimento desses valores é quase unânime, por que os camponeses são tão raros nesses tempos? Por que os grandes centros urbanos não estão repletos desses indivíduos encantadores? Por que há tão poucos camponeses entre nós, mesmo no interior e ao redor das grandes cidades? Vou mais longe: por que também homens e mulheres das pequenas cidades brasileiras querem esquecer-se de sua origem e desejam renegar sua natureza, diria, camponesa? Enfim, quais virtudes existiam no camponês de ontem e, hoje, não mais existem? De modo positivo, como se pode resgatar a alma do camponês, a fim de que se povoem as cidades com esse indivíduo necessário e fascinante?
Nessa primeira abordagem, penso que a característica mais evidentemente incomum em nossos bairros e cidades é a gratidão. De modo direto: a virtude que falta em nossos tempos – não a mais importante; antes, a mais rara – é a gratidão. O segredo do camponês é essa pequena virtude, que transforma de modo tão profundo o cotidiano das pessoas. Sem gratidão, não há reconhecimento da pequenez da vida humana nem da própria opinião. Sem gratidão, não há reconhecimento dos inúmeros benefícios que todos os dias os outros nos cumulam. Sem gratidão, o homem tende a ver-se independente de outros e até de Deus. E esse é um dos aspectos que impede a proliferação de camponeses em nossas cidades. O camponês de todas as latitudes é alguém que vive em constante estado de agradecimento: muito agradece o Sol e a chuva, o frio e o calor, o padeiro e a costureira. Não só: é alguém que varre sua calçada e a do vizinho, pega o seu café e o do colega de trabalho, por pura generosidade. É alguém que não vive sob o marco do egoísmo. Nas grandes cidades, contudo, o camponês é tido como tolo.
Com efeito, o que não falta contemporaneamente é esse sentimento de independência, que tem sua origem remota na filosofia moderna. Independência, prefiro o conceito de autonomia, é a noção que domina a vida cultural das grandes cidades. Sob o espírito moderno, quem não dá a si a norma da própria vida (auto-nómos) é alguém tutelado e oprimido por valores estranhos a si mesmo. Por isso, nesse momento histórico, os indivíduos não gostam de depender de outros, de obedecer a outros, de atender a outros, pois não querem sentir-se devedores de ninguém e também não gostam da ideia de retribuir favores. Retribuir, agradecer, dar é aceitar normas independentes de mim. E assim, conjuntamente com o sentimento de autonomia, caminha a decisão irrevogável e a rejeição perpétua de receber e prestar qualquer ajuda a qualquer pessoa. O homem das cidades precisa romper os vínculos para ser autônomo; o camponês, pelo contrário, tem saudade de suas raízes. Não só aceita como ama seus vínculos de dependência. A gratidão é quase natural ao camponês.
Eis o núcleo da questão: como alguém pode ser grato, se a própria gratidão é entendida como fraqueza? Se a autonomia é a regra da vida contemporânea, por que devo agradecer os benefícios e esperar de alguém, sem compreender-me como fracassado? Tudo gira em torno da noção de autonomia. Camponeses são raros porque, em certa medida, o camponês é um desterrado: não tem casa nem lar permanente. E como desterrado, sabe agradecer os benefícios que lhe sobrevém cada dia. O camponês, que mora em todas as cidades, é alguém que não se encontra em casa em lugar algum. Ele mora, mas não habita. O camponês é alguém sempre a caminho e, por esse mesmo motivo, é alguém sempre confortável em lugar nenhum. A virtude necessária a qualquer camponês é a compreensão clara de que não há, nessa vida, casa permanente. Somos hóspedes permanentes e não será evidente que um hóspede ingrato é mau hóspede? O sentimento paroquial (paróquia significa casa passageira) é uma virtude necessária para a proliferação de camponeses em nossas cidades. Quanto mais confortável no mundo, menos habitará no indivíduo o espírito necessário ao camponês. Pois todo camponês sabe perfeitamente que ou o campo se estende ao mundo inteiro ou não há qualquer necessidade de camponeses nessa vida.
* Robson Oliveira é professor de Filosofia
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