Nós, homens, precisamos reconhecer-nos em algum lugar. É uma característica antropológica1. O sentimento de pertença chega a ser classificado, por Martin Heidegger, de estrutura existencial e a angústia é justamente a falta de lugar, comparável ao sentimento de desterro2. Essa é a razão pela qual o homem transforma o seu entorno, a fim de que o mundo se pareça com nosso lar. Com efeito, ninguém mora numa megalópole. Ninguém finca raízes numa estação de trem. Moramos em lares, em lugares que transformamos um pouco em nós, em lugares que podemos criar raízes. E assim, alguém pode até chamar a estação de trem de “seu” lar ou estar “em casa” numa megalópole, contanto que transforme esses lugares em algo de próprio. Por isso, para que o mundo se humanize um pouco, é preciso que haja mais camponeses por aí, mais pessoas que tenham raízes onde estão, que gostem de deitar raízes onde estão, que transformem o seu entorno em seus próprios lares. E só é possível estar em seu lar, em todo lugar, se o lar é lugar algum. Nesse sentido, para que o mundo fique repleto de camponeses – o que, na opinião de Joseph Ratzinger, nunca mais vai acontecer com a frequência com que sonhamos3 –, é necessário grande dose da virtude da veracidade.
Mas alguém pode dizer-nos, contudo, que o camponês é cético por natureza, desconfiado de pai e mãe (e prometo explorar essa característica em breve), mas parece-nos justamente o contrário. Os camponeses são pessoas que acreditam. De fato, esse ceticismo do camponês só é possível a partir de algum sentimento de veracidade. Só a saudade da verdade pode produzir o cético, só uma certeza absoluta na existência da verdade pode dar origem a algum tipo de ceticismo. Ora, a desconfiança só acontece a partir da negação da confiança. Desconfiar da verdade só tem sentido se houver alguma verdade. É então que o olhar desconfiado do camponês se transforma, como num espelho, no vislumbre da virtude da veracidade. Se nossas cidades fossem povoadas por esse personagem maravilhoso, com seu fiapo de grama no canto da boca e um sorriso discreto nos lábios, muitas pessoas evitariam os golpes e as enganações dos grandes centros urbanos do nosso país.
Santo Tomás de Aquino já antecipava, no século XIII, o espírito de cada camponês que existiu e que existiria a partir de então. Ele dizia que cada um que pretenda alcançar a verdade e avançar nos estudos, precisa tomar algumas atitudes específicas. Numa carta dirigida a seu irmão de comunidade, Frei João, dá um conselho útil a todo aquele que aspira obter o espírito de O Camponês:
Esforça-te por abastecer o depósito de tua mente, como quem anseia por encher o máximo possível um cântaro.
Et quidquid poteris, in armariolo mentis reponere satage sicut cupiens vas implere4.
Por que o camponês pretende saber a verdade, e saber a verdade toda, é que ele se parece um tanto cético, quando lhes contamos algum fato extraordinário. Mas o camponês, como primeira atitude, tende a acreditar. Ao ouvir que, em certo lugar, o Sol girou e milhares de pessoas ficaram secas de repente, após temporal que a todos encharcou, com registro em jornais locais, o camponês retorce o fiapo na boca, mas não despreza o relato de antemão. O camponês sabe que há fatos que ultrapassam seu cotidiano simples. Ao ler que, num outro lugar, um homem ficou 5 anos sem uma das pernas, mendigando diante de uma igreja e que – num átimo – a perna reapareceu, levando o caos a sua cidadezinha natal, de modo que esse fato extraordinário foi registrado no cartório da localidade, tendo como testemunhas seus parentes, pessoas da cidade e a equipe médica que amputou a perna do rapaz 5 anos antes, o camponês faz cara séria, respira fundo, mas tende a dar fé ao relato, pois sabe que a realidade é mais complexa do que parece. O camponês não sofre dessa doença atroz e adolescente, o ceticismo doentio. Claro, mas o camponês só acredita ser verdade quando há razões para tanto. Quando percebe que o relato é falso ou mentiroso, quando o camponês flagra o contador de histórias em contradições, quando se percebe diante de alguém que se aproveita para torcer um fato a fim de lucrar sordidamente, aí outro lado aparece: o bom humor. Se cada camponês anela a verdade, sonha ainda mais com O Verdadeiro. Se cada homem tem sede de um lar, o único lar que interessa ao camponês é aquele onde não haverá mais mentiras e meias-verdades. Por isso, quando percebe que os seus compatriotas não têm o respeito devido à verdade, é quase inevitável criar um modo de ridicularizar aquele relato descabido para salvaguardar a Verdade, aquela linda senhora. Então ele solta, com o sorriso já escancarado: “E aí você acordou, né?”.
1 Tratamos disso no artigo inicial de Como se tornar um camponês.
2 Estruturas existenciais são, na filosofia heideggeriana, condicionamentos que todo dasein (homem) possui. “Ser-em” é a estrutura existencial que determina que o lugar é condição para o homem. A angústia acontece quando o homem se percebe fora de lugar, sem o seu lugar no mundo, quando o sentido do mundo se perde.
3 A já famosa profecia de Joseph Ratzinger, editada no Brasil no livro Fé e Futuro, descreve a Igreja Católica sem o tamanho e a importância política do passado: “De la iglesia de hoy saldrá también esta vez una iglesia que ha perdido mucho. Se hará pequeña,deberá empezar completamente de nuevo. No podrá ya llenar muchos de los edificios construidos en la coyuntura más propicia. Al disminuir el número de sus adeptos, perderá muchos de sus privilegios en la sociedad. Se habrá de presentar a sí misma, de forma mucho más acentuada que hasta ahora, como comunidad voluntaria, a la que sólo se llega por una decisión libre. Como comunidad pequeña, habrá de necesitar de modo mucho más acentuado la iniciativa de sus miembros particulares. Conocerá también, sin duda, formas ministeriales nuevas y consagrará sacerdotes a cristianos probados que permanezcan en su profesión: en muchas comunidades pequeñas, por ejemplo en los grupos sociales homogéneos, la pastoral normal se realizará de esta forma. Junto a esto, el sacerdote plenamente dedicado al ministerio como hasta ahora, seguirá siendo indispensable. Pero en todos estos cambios que se pueden conjeturar, la iglesia habrá de encontrar de nuevo y con toda decisión lo que es essencial suyo, lo que siempre ha sido su centro: la fe en el Dios trinitario, en Jesucristo, el Hijo de Dios hecho hombre, la asistencia del Espíritu que perdura hasta el fin de los tiempos. Volverá a encontrar su auténtico núcleo en la fe y em la plegaria y volverá a experimentar los sacramentos como culto divino, no como problema de estructuración litúrgica”. Fé y Futuro. Salamanca: Sigueme, 1973, p. 76.
4 De modo studendi, 11.