*Rafael Guedes
Li quase tudo que saiu de Nietzsche em português, e posso facilmente apontar as inúmeras virtudes de seu pensamento. Nietzsche não escreveu o que escreveu porque era louco. A loucura, decorrente de uma sífilis ou um câncer cerebral (os pesquisadores divergem), só apareceu no fim de sua vida, quando quase toda a sua obra já estava pronta.
Para quem sabe ler, os livros de Nietzsche revelam uma admirável coerência interna. Ele sabia o que estava fazendo, sabia por que o estava fazendo e sabia como o estava fazendo. Se há algo de que o pensador alemão não pode ser acusado, é de inconsciência. Não, a sua obra não é um fruto da demência. É, ao contrário, o produto de uma mente obsessivamente lúcida, “francesa” no espírito e na forma, e clara como o sol do mediterrâneo que ele tanto amava.
Dizer, como dizem os seus detratores, que Nietzsche era simplesmente “louco”, serve apenas para valorizar, com ares de superioridade, os seus acertos, e para relevar, com irresponsável leviandade, os seus problemas.
Nietzsche, mais do que qualquer outro filósofo desde Platão, precisa ser levado muito a sério. Muitíssimo a sério. Ele é o pai do mundo moderno em absolutamente todos os seus aspectos, dos maiores aos mais insignificantes. Qualquer pessoa que tenha vivido nos últimos 120 anos pensou, agiu e falou em algum momento como Nietzsche queria que ela tivesse pensado, agido e falado, ainda que disso não tivesse a mínima ideia.
E, entre os principais problemas que a sua doutrina levantou para o ocidente helênico e cristão, está aquele que deve ser o mais importante e perigoso: a sua filosofia da vontade. Com diabólica perspicácia, Nietzsche entendeu que o coração da vida cristã é a vontade. E foi a vontade que ele corrompeu. O cristão não se distingue por sacrificar o seu intelecto a Cristo. Não, nada disso. Lúcifer, vale lembrar, era o mais inteligente dos anjos. O cristão se distingue por sacrificar a sua VONTADE a Deus.
Não se diz bom, afirmava Santo Tomás de Aquino, quem tem um intelecto bom, mas quem tem uma vontade boa. Na luta do bem contra o mal, é a vontade que exerce o papel decisivo. É a vontade que deve ser submetida a Deus para ser purificada e sublimada.
O intelecto nada mais é do que um vassalo da vontade. E foi com satânica determinação que Nietzsche “libertou” a vontade; que Nietzsche afirmou a satisfação dos impulsos mais egoístas; que Nietzsche entregou ao homem o fogo fátuo dos deuses. Nesse aspecto, e talvez somente nesse aspecto, a sua obra é satânica, perfeitamente satânica, no grau mais elevado.
Terá sido por acaso que, quando se mudou para a Itália pela primeira vez, ele tenha escolhido para morar o local onde, segundo a lenda, Satanás teria caído após ser expulso do Céu? Não, não foi por acaso. Nietzsche nunca deu um único passo em falso. Esse homem era sério. E precisa, com a máxima urgência, ser levado a sério por todos aqueles que, de uma forma ou outra, vivem sob o tenebroso reino que ele instaurou sobre a Terra.
* Rafael Guedes é Jornalista
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