James Agee**
Falamos agora de fins de tarde de verão em Knoxville, Tennessee, na época em que morei lá tão bem-sucedidamente disfarçado para mim mesmo de criança. Era um quarteirão um tanto quanto misto, muito solidamente classe média baixa, com uma ou duas protuberâncias para cada lado dessa linha. As casas combinavam: casas de madeira de tamanho médio graciosamente treliçadas, construídas no fim dos anos 1890 e começo dos 1900, com fachadas e laterais acanhadas e quintais mais espaçosos, e árvores nos quintais, e varandas. Eram árvores de madeira macia, choupos, tulipeiros, álamos. Duas ou três casas tinham cercas, mas em geral os quintais davam uns para os outros tendo apenas de vez em quando uma sebe baixa que não ia muito bem. Havia poucos bons amigos entre os adultos, e eles não eram suficientemente pobres para aquele outro tipo de relação íntima, mas todos acenavam uns para os outros e se falavam, e até podiam conversar por algum tempo, trivialmente, indo de um extremo a outro, da generalidade ao detalhe, e via de regra vizinhos de porta conversavam bastante quando por acaso topavam uns com os outros, e nunca se visitavam. Os homens eram em geral pequenos comerciantes, um ou dois executivos muito modestos, um ou dois trabalhavam com as mãos,quase todos em balcões, e quase todos tinham entre trinta e quarenta e cinco anos.
Mas é desses fins de tarde que falo.
A janta era às seis e estava finda às seis e meia. Ainda havia luz que brilhava doce e enodoada, como o interior de uma concha; e os candeeiros de carvão erguidos nas esquinas estavam acesos na luz, e os gafanhotos estavam acesos, e os vagalumes desligados, e uns poucos sapos se espojavam na grama orvalhada, quando chegava a hora de saírem pais e crianças. As crianças apareciam primeiro, correndo alucinadas e berrando os nomes por que eram conhecidas; aí vinha o tranquilo naufrágio dos pais, de suspensórios cruzados, colarinhos removidos e pescoços que pareciam altos e tímidos. As mães ficavam lá na cozinha lavando e secando, guardando coisas, repisando suas pegadas sem rastros como as jornadas vitalícias das abelhas, medindo o chocolate em pó para o café da manhã. Quando saíam, tinham tirado os aventais e suas saias estavam umedecidas, e sentavam-se em cadeiras de balanço nas varandas, sossegadas.
Não é das brincadeiras das crianças ao entardecer que quero falar agora, é de uma atmosfera contemporânea sua que pouco tem que ver com elas: a dos pais das famílias, cada um em seu pedaço de gramado, camisa submarinamente clara sob luz aberrante e rosto quase anônimo, regando a grama. As mangueiras se prendiam a torneiras que se projetavam das fundações de tijolos das casas. Seus bicos se dispunham de diversas maneiras, mas normalmente de modo a que houvesse um longo e delicado jorro de gotículas, o bico molhado na mão, a água escorrendo no antebraço direito e no pulso da camisa de manga revirada, e a água borbotando um longo cone lesto e recurvo, e um som tão sutil. Primeiro um insano ruído de violência no bico, depois o som ainda irregular do ajuste, depois a suavização da firmeza e um tom que se afinava com tanta precisão ao tamanho e ao estilo do jorro quanto um violino. Tantas qualidades de som vindas de uma só mangueira — tantas diferenças corais vindas das diversas mangueiras ao alcance do ouvido. Vindo de qualquer mangueira, o silêncio quase morto da liberação, e o curto arco imóvel das grandes gotas individuais, silentes como alento sustido, e o único ruído era o harmônico ruído nas folhas e na grama estapeada pela queda de cada grande gota. Isso, e o intenso zumbido com o jorro intenso; isso, e aquela mesma intensidade, que não diminuía, mas se tornava mais calada e delicada com o girar do bico, até o mais terno dos sussurros quando a água era apenas ampla campânula de película. Basicamente, contudo, as mangueiras ficavam reguladas de forma muito parecida, em um meio-termo entre distância e ternura de jorro (e com bastante certeza havia uma noção de arte por trás desse meio-termo e uma profunda e tranquila alegria, real demais para poder ser reconhecida), e os sons portanto se afinavam bem iguais; pontuados pelo ronco da partida de uma nova mangueira; decorados por algum homem que se divertia com o bico; abandonados, ocos, como Deus pela queda da andorinha, quando um só deles desiste: e todos, conquanto quase iguais, de variados tons; e nesse uníssono. Esses delicados jatos pálidos à luz levantam todos juntos seu palor e suas vozes, mães acalmando os filhos, prolongando-se o acalmar mais que o devido, os homens cordatos e silentes e cada um deles recolhido, caramujo, na quietude do que, só,está fazendo, a micturição de crianças imensas dispostas algo militarmente contra um muro invisível, e cordatas, felizes e em paz, provando a parca bondade de suas vidas como a última das ceias que tivessem na boca; enquanto os gafanhotos prolongam aquele ruído de mangueiras em sua tonalidade tão mais alta e mais aguda. O ruído do gafanhoto é seco e parece não provir de raspagem ou vibração, e sim ter sido extraído dele como que por um pequeno orifício graças a um alento que jamais pode morrer. Também não há jamais um só gafanhoto, mas a ilusão de pelo menos um milhar. O ruído de cada gafanhoto se afina em certa clássica gama gafanhota do qual nenhum deles varia mais que dois tons inteiros: e contudo parece que você ouve cada gafanhoto isolado de todo o resto, e há um longo, lento pulsar em seu ruído, como o arco de parcos contornos de uma ponte longa e elevada. Estão em todos os lugares, em todas as árvores, de modo que o ruído parece vir ao mesmo tempo de lugar nenhum e de toda parte, de toda a concha dos céus, arrepiando-se em sua carne e açulando seus tímpanos, o mais afirmativo de todos os sons da noite. E contudo ele é de regra nas noites de verão, e é da grande ordem dos ruídos, como os ruídos do mar e do sangue, seu neto precoce, que você percebe que está escutando apenas quando se apanha ouvindo. Enquanto isso, do piso das trevas, logo além dos horizontes dançantes das mangueiras, dizendo sempre grama na água do orvalho e sua forte mancha negro-verde de aromas, o ruído regular conquanto espaçado dos grilos, cada um deles um delicado ruído frio e argênteo em tercinas, como o deslizar a cada vez de três elos iguais de uma pequena corrente.
Mas os homens, a essa altura, um a um, silenciaram suas mangueiras, que drenaram e enrodilharam. Agora apenas dois, e já apenas um restou, e pode-se ver somente uma camisa fantasma com ligas nas mangas, e o mistério sóbrio de seu rosto manso como a face erguida de uma grande rês inquirindo sobre a tua presença em um lago escuríssimo de campinas; e agora ele também se foi; e tornou-se aquele momento do entardecer em que as pessoas se sentam em suas varandas, balançando-se suaves e falando suave e observando a rua e o alçar-se para suas esferas de domínio das árvores, de pássaros portos pendentes, pousios. Passam pessoas; coisas passam. Um cavalo puxando uma carroça, irrompendo sua oca música férrea sobre o asfalto; um estrepitoso automóvel; um silencioso automóvel; pessoas aos pares, sem pressa, errando, trocando o apoio do peso do corpo estival, conversando à toa, pairando sobre elas o gosto de baunilha, morango, papelão e leite engrossado, a imagem sobre eles de amantes e cavaleiros, emparelhados a palhaços, em âmbares, sem tons. Um bonde elevando seu gemido de ferro; parando, sinando e partindo; estentóreo; exaltando e alto alçando seu crescente gemido de ferro e nadando com suas janelas de ouro e assentos de palha passando passados, a lúgubre fagulha estralejando e sobre ele amaldiçoando como um pequeno espírito maldoso aplicado a seguir seu rastro; o férreo estrilo aumenta,aumentada a velocidade; ainda mais alto, desfalece; detém-se, o vago acúleo do sino; aumenta de novo, ainda mais alto, falecendo, erguendo-se, ergue-se, desfalece falido: olvidado. Agora é a noite um só orvalho azul.
Agora é a noite um só orvalho azul, meu pai drenou, enrodilhou a mangueira.
Baixo na extensão dos gramados, o extenuar de um fogo que respira.
Satisfeito, argênteo, como olhares de luz, cada grilo faz e refaz seu comentário na grama afogada.
Um gélido sapo baqueantemente naufraga.
Entre as beiras de úmidas sombras de quintais laterais pairam crianças quase doentes da alegria do medo, que observam a troca da guarda de um poste telefônico.
Em torno de brancas lâmpadas de esquina de carvão, insetos de todos os tamanhos erguem-se elípticos, sistemas solares. Grandes conchas rijas se entreferem, ataques: está caído de costas, esperneante.
Pais nas varandas: balançam-se-lançam: De úmidos barbantes, ipomeias: pendem suas faces antiquadas.
O seco e exaltado ruído dos gafanhotos de todo o ar imediatamente encanta meus tímpanos.
Na grama áspera e úmida do quintal dos fundos, meus pai e mãe estenderam colchas. Ali nos estendemos todos, minha mãe, meu pai, meu tio, minha tia, e eu também estou estendido ali. Primeiro estávamos sentados, então um de nós se estendeu, e então nos estendemos todos, de bruços, de lado, de costas, e continuaram falando. Não estão falando muito, e a conversa é tranquila, sobre nada em especial, sobre nada mesmo de especial, sobre nada. As estrelas são vastas e vivas, parecem cada uma um sorriso de grande doçura, e parecem muito próximas. Toda a minha gente são corpos maiores que o meu, quietos, com vozes delicadas e sem sentido como as vozes de pássaros adormecidos. Um é um artista, está morando conosco. Uma é musicista, está morando conosco. Uma é minha mãe, que é boa para mim. Um é meu pai, que é bom para mim. Por algum acaso, aqui estão, todos nesta terra; e quem há de um dia narrar a dor de estar nesta terra, estender-se sobre colchas, na grama, em uma noite de verão, entre os sons da noite. Que Deus abençoe minha gente, meu tio, minha tia, minha mãe, meu bom pai, ah, lembre-se deles com carinho em suas horas de aflição; e na hora em que forem levados.
Depois de um tempo, sou recolhido e posto na cama. O sono, sorrindo suave, puxa-me para si: e me recebem aqueles que me tratam silentes, como alguém íntimo e bem-amado naquele lar, mas que não vão, ah, não vão, não agora, nem nunca, não vão jamais me dizer quem sou.
Fonte: Companhia das Letras
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* “Knoxville: verão de 1915” é um trecho curto de Agee que foi usado como prólogo para o romance “Uma morte em família”, editado no Brasil pela Companhia das Letras e traduzido por Caetano Galindo. De acordo com o pianista Moacyr Laterza Filho, “Knoxville: verão de 1915″ também virou uma obra musical:
Knoxville: verão de 1915 foi composta em 1947 e tem como texto excertos de uma breve obra em prosa de James Agee, escrito em 1938. O texto de Agee é uma espécie de pintura onírica e nostálgica de um garoto em Knoxville, Tenessee, sul dos Estados Unidos. O enredo é narrado por um garoto, cuja voz, por vezes, confunde-se com a do adulto que o escreve. Com isso, Agee faz com que seu texto adquira certas feições de devaneio, em que não se pode precisar ao certo a identidade do narrador. Criando um paralelo com esse artifício narrativo, Barber compôs a sua Knoxville em um único movimento, e a denominou uma “rapsódia lírica”, procurando, dessa forma, refletir musicalmente algo da fluidez espontânea da prosa de Agee. Assim, essa obra de Barber apresenta uma espécie de livre movimento de um material temático a outro, ora gerando contrastes, ora amenizando as transições. Criando um elemento de unidade e coesão, porém, a primeira melodia apresentada pela parte vocal é evocada outras vezes no decorrer da peça, sempre transformada e retrabalhada. Estreada em 1948 pela Orquestra Sinfônica de Boston, sob a batuta de Serge Koussevitski, Knoxville: verão de 1915 é exemplo claro da sensibilidade criadora desse norte-americano que optou pela liberdade individual de expressão.
Aqui aparece interpretada por Sarah Tucker:
** James Rufus Agee nasceu em 1909, no Tennessee, e se formou em Harvard. Escritor, jornalista, poeta e roteirista, nos anos 40 e 50 foi um dos mais influentes críticos de cinema dos Estados Unidos. Seu romance autobiográfico A death in the family, publicado postumamente em 1957, ganhou o prêmio Pulitzer. Agee morreu em 1955.