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Notas e citações sobre o perigo de um cristianismo meramente cultural

Umas notinhas provavelmente pretensiosas, que só continua online porque pode interessar a alguém que pise em alguns terrenos nos quais também pisei.

François Mauriac e o teólogo e futuro cardeal Jean Daniélou em peregrinação à Chartres

Corremos o risco de certo cristianismo esteticista que para na beleza e na cultura, nelas ficam ‘patinando’, sem encaminhar-se para Cristo. Um cristianismo que acha bastante a “civilização” , basta educar a imaginação e acaba correndo o risco de prescindir da graça. Isso é muito sutil e perigoso. As pessoas não percebem que cultura (ainda que ‘cristã’), conservadorismo, educação clássica não são o cristianismo. Enganam-se e se acomodam-se nisto. Não chegam ao que Bento XVI chama de “fato”, de “acontecimento” do cristianismo, que é o encontro com Cristo. O filósofo Remi Brague chamou a atenção para este cristianismo meramente cultural, que acaba gerando ‘cristianistas’ e não cristãos. É uma tentação.

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Este ‘cristianismo cultural’, que paralisa tanto quanto o anti-intelectualismo de certas vertentes cristãs… Penso que é uma questão de ordenar as coisas. Partir de Cristo para chegar a Cristo… A cultura e a literatura não ‘salvam’, são meios. E é preciso sempre um fino discernimento para atravessar esta ‘floresta’.

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” A Literatura é deveras uma coisa maravilhosa. E é por isso mesmo que ela é perigosíssima: Ela é tão maravilhosa que passa a ser a religião de muitos.” (Bernardo Souto)

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“Ciceronianus es, non Christianus” (Jesus Cristo, numa aparição, a São Jerônimo)

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“Você não compreendeu nada — disse ela levantando os ombros. Você nunca sairá da literatura.” (‘Um sonho ruim’, Georges Bernanos)

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“I’m going back to Literature again, I can’t keep this thing under control.” (“The Ocean Full of Bowling Balls”, Three Stories, J.D. Salinger)

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É bonito quando convertidos como Jacques e Raïssa Maritain diziam sentir o cristianismo ‘pulsando’ nas páginas de “A Mulher Pobre” , romance de Leon Bloy. E, de fato, tornaram-se cristãos, sendo Bloy seu padrinho. O “cristianismo das páginas”, tornou-se cristianismo de fato. É um belo exemplo!

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O padre Elílio Junior nos fala de um banho eclesial:

“A fé cresce e amadurece quando tomamos continuamente o “banho eclesial”, isto é, quando vivemos a vida da Igreja e passamos a sentir com ela. Na Igreja temos: a Palavra proclamada, a liturgia celebrada, o testemunho de pessoas que se doam, a orientação dos pastores, a reflexão da teologia; em suma, o contato vivo e vivificante com as origens da nossa fé, Cristo e os apóstolos.”

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Fazer todos cursos, ler mil listas de livros, assistir zilhões de séries e filmes de mil diretores renomados, passar por todas as etapas da educação de imaginação, conhecer o pensamento de todos os filósofos e mergulhar na alta cultura não faz de nós cristãos. Isso tudo é excelente e pode nos ajudar muito, de acordo com a nossa vocação. Ser erudito, filósofo, comentador ou crítico cultural e escritor pode ser muito bom, mas não me torna cristão. Já critiquei inúmeras vezes o cristianismo meramente cultural que vejo crescer nas redes sociais, nos ambientes de ‘direita’. Muitos querem absorver o cristianismo das páginas de livros, mas não o da paróquia, onde recebemos a vida de Cristo pelos sacramentos, na comunidade, etc. No fundo, acaba sendo uma espécie de gnose, substitui-se a vivência cristã cotidiana (paróquia, santificação pelo trabalho, apostolado, busca da santidade diária) pelo “conhecimento”… Coisa estranha e perigosa.

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São pertinentes também as palavras do professor Robson Oliveira:

“A tentação da gnose não foi expurgada da vida das pessoas ainda. Para alguns, o conhecimento é — sozinho — a única solução para humanização, para a evangelização, para a transformação das pessoas. Tolice! Quem conhece Aristóteles sabe que não é só o conhecimento o responsável pela felicidade humana. O acrático — aquele que sabe mas não se satisfaz — continua a impor seu grito sarcástico contra o ignorante gnóstico.”

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O discurso de São Paulo no Areópago, presente no livro dos Atos dos Apóstolos é, reconhecidamente, uma peça de alto valor literário, filosófico e religioso. São João Paulo II assim se refere a ele na “Fides et Ratio”:

Nos Actos dos Apóstolos, o evangelista Lucas narra a chegada de Paulo a Atenas, numa das suas viagens missionárias. A cidade dos filósofos estava cheia de estátuas, que representavam vários ídolos; e chamou-lhe a atenção um altar, que Paulo prontamente aproveitou como motivo e base comum para iniciar o anúncio do querigma: « Atenienses — disse ele — , vejo que sois, em tudo, os mais religiosos dos homens. Percorrendo a vossa cidade e examinando os vossos monumentos sagrados, até encontrei um altar com esta inscrição: “Ao Deus desconhecido”. Pois bem! O que venerais sem conhecer, é que eu vos anuncio » (Act 17, 22–23). Partindo daqui, S. Paulo fala-lhes de Deus enquanto criador, como Aquele que tudo transcende e a tudo dá vida. Depois continua o seu discurso, dizendo: « Fez a partir de um só homem, todo o género humano, para habitar em toda a face da Terra; e fixou a sequência dos tempos e os limites para a sua habitação, a fim de que os homens procurem a Deus e se esforcem por encontrá-Lo, mesmo tacteando, embora não Se encontre longe de cada um de nós » (Act 17, 26–27).

O Apóstolo põe em destaque uma verdade que a Igreja sempre guardou no seu tesouro: no mais fundo do coração do homem, foi semeado o desejo e a nostalgia de Deus. Recorda-o a liturgia de Sexta-feira Santa, quando, convidando a rezar pelos que não crêem, diz: « Deus eterno e omnipotente, criastes os homens para que Vos procurem, de modo que só em Vós descansa o seu coração ». [ 22] Existe, portanto, um caminho que o homem, se quiser, pode percorrer; o seu ponto de partida está na capacidade de a razão superar o contingente para se estender até ao infinito.

De vários modos e em tempos diversos, o homem demonstrou que conseguia dar voz a este seu desejo íntimo. A literatura, a música, a pintura, a escultura, a arquitectura e outras realizações da sua inteligência criadora tornaram-se canais de que ele se serviu para exprimir esta sua ansiosa procura. Mas foi sobretudo a filosofia que, de modo peculiar, recolheu este movimento , exprimindo, com os meios e segundo as modalidades científicas que lhe são próprias, este desejo universal do homem.

Paulo, mestre na retórica, inteligência peculiar e o maior evangelizador que a Igreja conheceu, antecipa o que se iria chamar de inculturação, o “novo ardor missionário, novos métodos e novas expressões” que só uma alma aberta ao Espírito pode possuir.

Enquanto o Apóstolo pisou no terreno filosófico, partindo do “Deus desconhecido”, ou no da literatura e da poesia, citando os poetas (“Nós também somos de sua raça”),tudo ia bem. Mas bastou que, ao final do discurso, Paulo completasse o querigma com o anúncio da ressurreição para ser repelido pela assembléia:

“Quando o ouviram falar de ressurreição dos mortos, uns zombavam e outros diziam: A respeito disso te ouviremos outra vez. Assim saiu Paulo do meio deles.”
Atos dos Apóstolos 17 ,32–33

Passar das “páginas” para o acontecimento era demais para eles. Passar das idéias ao fato da ressurreição foi um choque. Passar do mundo da cultura à vida eterna, descer à realidade em si era insuportável. Mas é assim: o Verbo que se fez carne, que pisou nosso chão, que derramou seu sangue no solo deste mundo e que abraçou toda a história, toda a cultura, todos os homens, também ressuscitou e está aqui. O apóstolo sabia que a arte, a poesia e a filosofia eram meios, mas o fim era outro. O fim é sempre Cristo. Foi o que Paulo anunciou. Seu anúncio fazia com que as almas descessem ao chão da realidade. Paulo não desejava um cristianismo de letras ou idéias, mas de fato. E para isto, era preciso anunciar a ressurreição.

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Na minha curta experiência com apostolados virtuais já escutei/li/presenciei algumas vezes pessoas que se definiam como cristãos dizendo: “não respondo sobre religião”, “você prega demais”, “você está querendo catequizar a literatura”, “você está sendo panfletário”… Em tudo isso, não posso deixar de notar um eco daquele desprezo dos atenienses: “A respeito disso te ouviremos outra vez.”

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O “cristianismo meramente cultural”, como já falamos, acaba priorizando as idéias e a cultura e menos a experiência diária do cristianismo (o “sal da terra, luz do mundo”) e o “banho eclesial” citado pelo padre Elílio.

É preciso cuidado com esse tipo de “cristianismo” que chama aqueles que engajam nos apostolados e nos grupos paroquiais, ou nas comunidades e movimentos de “igreijeiros”, como se fosse possível viver um cristianismo que se abstém da oração, da vida e do serviço comunitários. Como se fosse possível ficar em casa, estudando, fazendo cursos, adquirindo conhecimento e, de vez em quando, peregrinar pela cidade atrás de uma liturgia “pura” (outro assunto importante — o donatismo moderno).

Ou, como se fosse possível, ficar num cristianismo que se alimenta somente de vestígios cristãos em produtos culturais (séries, livros, filmes, discos, etc) ou nos clássicos.

É preciso, descer à realidade, onde Cristo ressuscitou. “Voltar às coisas mesmas!”, como dizia Husserl. Ir ao encontro do fato, do acontecimento central da História.

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E já saibam que estas observações nada têm de anti-intelectualistas ou de fideístas. Acredito, de mãos dadas com a Igreja, que:

“A fé e a razão (fides et ratio) constituem como que as duas asas pelas quais o espírito humano se eleva para a contemplação da verdade. Foi Deus quem colocou no coração do homem o desejo de conhecer a verdade e, em última análise, de O conhecer a Ele, para que, conhecendo-O e amando-O, possa chegar também à verdade plena sobre si próprio (cf. Ex 33, 18; Sal 2726, 8–9; 6362, 2–3; Jo 14, 8; 1 Jo 3, 2).”

(Carta encíclica Fides et Ratio, de São João Paulo II)

Texto escrito em 2018

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