
A posição da Igreja a respeito da sexualidade humana é comumente mal compreendida.. Em um dos mais recentes livros do Papa Francisco, “TerraFutura”(2020), registro de uma conversa com o gastrônomo Carlo Petrini sobre a “ecologia integral”, o Pontíficie fez uma afirmação sobre o prazer sexual que causou polêmica no espaço público: “O prazer vem diretamente de Deus, não é católico, nem cristão, nem nada parecido, é simplesmente divino”. O fato de um Papa afirmar que “o prazer é divino” ainda causa estupefação e espanto, inclusive em alguns ambientes eclesiais. Pensando sobre sexualidade e perspectiva cristã, escrevi estas poucas notas, sem querer ser conclusivo, à guisa de reflexão.
Vamos a elas:
1. Enquanto acharmos que a castidade é uma adequação a um conjunto de regras, um “pode, não-pode” infantil, estaremos reduzindo a beleza desta virtude à uma prática mecânica baseada em um moralismo que leva, no fim das contas, aos escrúpulos. A castidade, como toda virtude, é mais uma postura de vida que assumimos diante do mistério de Cristo do que um simples cumprir de regras.
2. Onde mais há moralismo e rigidez, mais o risco do desvio está presente. O Papa Francisco disse, na homilia do dia 5 de setembro de 2020: “A rigidez não é um dom de Deus; a mansidão sim; a bondade sim; o perdão sim, mas a rigidez não! Por detrás da rigidez há sempre algo escondido, em muitos casos uma vida dupla.”
3. Penso ser necessário ressuscitar uma mística da castidade e cada vez menos fixar-se em regras e detalhes que nem são objeto de preocupação da Igreja ( “não ir além daquilo que está escrito” [I Cor 4,6b]). A tendência dos rígidos, dos obcecados por uma “igreja da perfeição” é exatamente essa: criar mil normas que garantam uma pseudo-segurança existencial e um falso consolo (São Bernardo fala de uma “alegria tola”) em assuntos sobre os quais a Igreja é discreta e fala quase nada. Essa falsa segurança não raras vezes esconde frustrações e uma sexualidade mal-resolvida. A Igreja nunca teve um “mapa” ou um roteiro para explicar como deve ser o ato sexual. Ao contrário , é discreta e respeita a liberdade dos filhos de Deus. Não estou, nem de longe, querendo ser relativista, ou aderir ao “entre quatro paredes vale tudo”. Sobre o ato sexual, a Igreja diz que há duas dimensões (unitiva e procriativa), que deve ser praticado de forma humana, respeitando a natureza própria do ato. Viver uma sexualidade humanamente sadia é um exercício de liberdade.
4. Também a sexualidade é um mistério e, assim como Ratzinger diz que é preciso entrar no “espírito da liturgia” para bem compreender os sacramentos (é preciso lembrar o ato sexual é “protegido” por um sacramento), igualmente no âmbito sexual há que se abrir a um espírito quase litúrgico para a bem celebrar. Isso inclui o básico: vida interior, oração, estudo (formação humana) diálogo, amizade, autoconhecimento, etc. É óbvio que aqui há uma analogia e ninguém vai transportar a gravidade e a solenidade próprias da liturgia da missa para um momento de intimidade e prazer legítimo do casal e fazer disso uma paranóia em vez de uma alegria (embora o ato sexual também compreenda uma gravidade e uma solenidade muito próprias) . Temos um caminho excelente, acho, na Teologia do Corpo, mas não só. Mais do que simplesmente um debruçar sobre a sexualidade, é preciso cuidar da integralidade do ser humano (a teologia do corpo, assim como os outros estudos antropológicos de São João Paulo II, marcados pelo personalismo, levam esse tratamento integral do ser humano muito a sério). Construir uma arquitetura de humanidade, insistir em um caminho de vida contemplativa (vida interior, vida examinada, vida aprofundada), respaldada pela reflexão teológica, mas também pelas artes, pela cultura e pela beleza. A beleza deveria ser o pão de cada dia dos amigos da castidade. Os olhos acostumados a contemplar a beleza sentem-se agredidos com a pornografia e a baixeza de uma sexualidade banalizada. Tudo isso faz parte de uma mística da sexualidade, que precisa ser descoberta e aprofundada.
5. Uma formação na área da sexualidade seria um itinerário, uma caminhada contemplativa que, ao fim, desembocaria na criação de uma “cultura”. Não que eu seja partidário de militar por uma cultura, mas a verdade é que vai se formando ao redor das almas que buscam a vida contemplativa uma inevitável expressão cultural que proporciona o nascimento e o crescimento das virtudes. O sair de si, o preocupar-se com o próximo, a magnanimidade, a caridade, a generosidade, a humildade, tudo isso abre caminho e faz a cama também para o nascimento e o crescimento de uma vida casta. Não há castidade sem amor. Não há amor verdadeiro onde há irmãos passando necessidade, fome, sem condições básicas de vida. Deus não precisa de nossas virtudes. O bem se pratica tendo em vista o outro, o próximo e não a si mesmo. A jactância e a soberba são inimigas da virtude. A castidade nasce, mais do que da preocupação em cumprir pequenas regrinhas (que, no fundo, só faz a gente olhar para nós mesmos ), dos afetos ordenados para Deus, em primeiro lugar, e para o próximo .
6. Lembremo-nos: Cristo redimiu também o sexo. Não nos submetamos a nada que macula a nossa liberdade e a beleza da sexualidade. Todos sabemos que nossa sociedade está tomada por uma hiperssexualização e que a pornografia, por exemplo, é uma tragédia. Mas não é caindo no extremo oposto, que seria uma rigidez baseada em regras frias, e, sim, ordenando o ser integral do homem, que encontraremos um caminho.