Conta-se na “Legenda Áurea” (Jacopo de Varazze) que, para celebrar doze anos de paz na Roma pagã, foi construído um magnífico templo com a estátua de Rômulo. Apolo foi consultado sobre quantos anos de paz ainda haveria pela frente, ao que respondeu: “Até o momento em que uma virgem der à luz”. Assim, todos imaginaram que a paz duraria para sempre, pois era impossível que uma virgem concebesse. “Templo da paz eterna”, resolveram inscrever, então, nas portas do local. Mas na noite em que a Virgem Maria deu à luz, o templo desabou.
A imagem daquele templo em ruínas nos adverte contra as falsas esperanças, como a de uma paz eterna cujo reino é deste mundo. Nos adverte contra uma paz que trai orgulho e soberba; que confunde idolatria com salvação; que deposita sua verdade nas obras dos homens. A “paz eterna” retorna ao pó de onde veio, reduzida aos escombros da prepotência humana.
Temos que voltar ao pó de nós mesmos para acolhermos a verdade da Boa Nova. É necessário que confrontemos nossa essência de barro ao nos depararmos com o milagre do menino concebido pelo Espírito Santo e nascido de uma virgem. A paz que assim termina não é a paz eterna, mas tão somente a falsa paz da consciência irrefletida, das nossas pretensões satisfeitas, das nossas tentativas de domesticar o mistério fundamental de nossas vidas.
Há que saber alegrar-se com nossa condição de pó, alegria que começa diante daquela criança tão vulnerável na manjedoura. Em “Paraíso à Porta”, Fabrice Hadjadj enumera três experiências que fundamentam a alegria que está no “fundo do ser”. Primeiro, o maravilhamento – que também está no fundamento da filosofia, como deslumbramento diante da realidade -, cujo exemplo mais nítido é o da criança que vai descobrindo as coisas pela primeira vez; conforme vamos amadurecendo, tais experiências vão exigindo o que São Tomás de Aquino chama de conformidade, que Hadjadj define como “venho ao mundo e o mundo vem a mim, e o dom desse encontro me maravilha e reclama minha gratidão. Daí vem a experiência inicial: reconhecer aquilo que me é dado e, dando graças ao doador, acolhê-lo sempre mais”.
A segunda experiência é da angústia, pois somos seres tão mais limitados e equivocados quanto mais plenamente gostaríamos de experimentar o maravilhamento inicial – em suma, estamos feridos pela Queda. Mas, pergunta-se Hadjadj, “de onde viria a impressão tão forte do vazio da minha existência se alguma coisa presente em mim não tivesse primeiro cavado seu receptáculo”? Existe aí a tentação do desespero ou da resignação cínica, mas, por outro lado, o vácuo provoca um certo horror que se faz necessário para abalar nossos corações ingratos e para nos abrirmos à graça.
A cruz é a terceira e última experiência que constitui a nossa alegria. Diz Hadjadj que “trata-se então de oferecer-se, isto é, de entrar nas dores do parto […] É porque ela quer estar sempre transbordando que a alegria neste mundo tem de passar pelo sofrimento”. É necessário sacrificar-se para que a nossa responsabilidade não se torne mero fardo de angústia, mas sim um transbordamento que engendra mais vida. Quem quiser gerar frutos, de algum modo terá que sacrificar-se – afinal, se o grão não morre, não germina.
Podemos perceber as três experiências da alegria fundamental no presépio de Natal. O maravilhamento é ação de graças, cujo paroxismo se dá no burro e no boi que se ajoelham diante do menino, assim como os reis magos que trazem presentes. O ventre de Maria já está vazio, mas ela continua cheia de graça, como testemunhamos e reafirmamos a cada vez que nos ajoelhamos, em ação de graças, diante da sua imagem com o Menino Jesus.
O vazio que angustia e até apavora está representado na caverna que a tradição iconográfica atribui ao local do nascimento de Jesus. A caverna lembra as profundezas e a escuridão dos subterrâneos, do Hades, do reino da morte, da habitação de bestas feras e da animalidade do primitivismo. Até mesmo a manjedoura, conforme representada na iconografia, lembra uma pequena tumba que emoldura o Menino Jesus. Mas tudo se ilumina diante da Encarnação que acontece na cena do Natal, e todas as ameaças da angústia rejubilam-se em maravilhamento. O presépio se assemelha a uma catedral gótica, em cujo centro brilha uma luz eucarística insuspeita para quem se atém ao aspecto sombrio e duro das pedras que a formam.
A cruz, por fim, é o que vai dar pleno sentido a tudo o que estamos vivendo no Natal, reunindo a gratidão e a queda num oferecimento completo, num sacrifício perfeito, o qual a Virgem antecipa quando diz sim ao anjo de Deus, oferecendo-se como serva do Senhor. O Natal é o fruto sendo oferecido num transbordamento do amor de Deus ao homem, e a sombra da Santa Cruz se faz presente nos sacrifícios que José e Maria fizeram para chegar até ali, dando à luz em situação adversa, longe do lar, em meio aos animais, à sujeira, à escuridão, num espírito de pobreza que recusa a ser brilhante para se iluminar por transparência, a partir do despojamento e da disponibilidade que são requeridos pela cruz.
Natal é tempo dessa alegria radical do fundo do ser. É tempo de derrubar os falsos templos que vamos construindo ao longo do ano, para nos abrirmos à esperança na verdadeira paz eterna. Como escreve Hadjadj, “de um lado, a alegria fundamental com a cruz terrível, e, de outro, meu prazer superficial com suas pequenas misérias. De todo modo, a maior miséria é ver-se abatido por misérias tão pequenas, tão miseráveis. E isso nos acontece toda vez que corremos atrás de alegrias pouco alegres, querendo prová-las sem sermos provados, ficando por isso com medo de sofrer a verdadeira alegria”.
Quem também nos ajuda a melhor expressar e compreender essa profunda alegria que ora celebramos é Bernanos, através do personagem vigário de Torcy, no romance “Diário de um pároco de aldeia”. Em certo ponto, o experiente vigário mostra ao jovem pároco um quadro que, apesar de inestético, representa o Menino Jesus entre o burro e o boi de um modo que lhe inspira simplicidade, humildade e alegria – e que sintetiza perfeitamente o espírito do presépio natalino:
“Por que será que o tempo de nossa infância nos parece tão radiante, tão doce? O garoto sofre, como toda a gente; e, aliás, é tão desarmado contra a dor, a doença! A infância e a extrema velhice deveriam ser as duas grandes provações do homem. Mas é do sentimento de sua própria impotência que a criança tira, humildemente, o princípio de sua alegria. Confia em sua mãe, compreende? Presente, passado, futuro, toda a sua vida, a vida inteira, fica suspensa a um olhar, e este olhar é um sorriso. Pois bem, menino, se nos deixassem agir, a nós, a Igreja teria dado aos homens essa espécie de segurança suprema. Nem por isso, entretanto, cada um deixaria de ter sua parte de aborrecimento. A fome, a sede, a pobreza, a inveja… Nunca seremos bastante fortes para botar o diabo em nosso bolso, você sabe! Mas o homem teria a certeza de que é filho de Deus; eis o milagre! […] Pois bem, meu caro, a Igreja foi encarregada por Nosso Senhor de manter no mundo esse espírito de infância, essa ingenuidade, esse frescor.”
No momento em que lembramos do nascimento do Menino Jesus, deixemos que o maravilhamento infantil nos arrebate em gratidão; ao fazermos memória da Virgem dando à luz, permitamos que a angústia do desconhecido abra espaço ao mistério do ser; ao contemplarmos a Sagrada Família junto aos animais na estrebaria, façamos ruir os templos de vã magnanimidade para nos voltarmos à verdade essencial de oferecimento e gratidão, na fé e na esperança de um Reino que começa assim, desse jeito mesmo, improvisado numa manjedoura, entre o burro e o boi. Eis o templo que não pode ruir, pois sua pedra angular foi rejeitada e sua luz não foi reconhecida, senão nas mentes e nos corações que testemunham a realidade da descoberta dessa alegria.
Afinal, desejamos feliz Natal e paz entre os homens acreditando num mundo melhor porque este mundo não é suficientemente bom, ou seja, por ressentimento e ingratidão? Melhor seria se acolhêssemos a Virgem reconhecendo que, apesar de tudo, este mundo é tão bom que, nas palavras de Hadjadj, “está prenhe de uma vida nova, semelhante à mulher em trabalho de parto: sua beleza, desfigurada pela dor, remete a outra coisa, e aí está o sinal de que ela não é estéril”.
Manter no mundo esse espírito de infância, de maravilhamento, de confiança no Verbo que se fez carne e na Virgem que se fez mãe – eis o milagre ao qual o Natal nos convoca!
Lucas Petry Bender
Dezembro de 2018
- Jacopo de Varazze
- Publisher: Companhia das Letras
- Edition no. 1 (06/24/2003)
- Capa dura: 1080 pages
- Fabrice Hadjadj
- Publisher: É Realizações
- Edition no. 1 (10/05/2015)
- Capa comum: 416 pages
- Georges Bernanos
- Publisher: É Realizações
- Edition no. 1 (06/01/2011)
- Capa comum: 288 pages