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Subsidariedade, solidariedade e a arte de conversar com o vizinho

*Pedro Menezes

Temos um imenso muro de lamentações chamado governo. O governo é como um poço sem fundo, um abismo vazio onde jogamos todos os nossos problemas, frustrações, falhas e catarses raivosas. Se algo dá errado no país, quase certamente é culpa do governo, esse mastodonte, essa fábrica de ineficiência movida a nosso dinheiro. E geralmente temos razão em culpá-lo. Mas nem sempre.

Parte da nossa reclamação contra o governo, embora justa, surge porque não o compreendemos muito bem. O governo é onipresente em nossas lamúrias e esperanças, mas não sabemos o que ele é. Não sabemos manuseá-lo. Todo poder emana do povo, mas o povo sequer leu o manual.
O governo é uma abstração. Não moramos no governo, mas em nossas comunidades, bairros, vizinhanças. Quando a Constituição diz “todo poder emana do povo”, isso significa (ou deveria) mais do que um cacoete iluminista. Significa um poder real, que comece nas nossas famílias — os pequenos reinos domésticos — envolva nossas ruas, bairros, cidades, gradualmente, até chegar no Governo Federal.

Acostumamo-nos a conceber um governo distante, “representativo”, de deputados e governadores, por várias razões. Elas incluem inércia, falta de tempo  (o trabalho frenético moderno não nos rouba apenas o tempo que deveria ser dedicado à família e às nossas habilidades criativas, mas também ao trato de nossos problemas comuns), interesse da classe política em manter-se como tal, individualismo, noção simplesmente errada de cidadania (que não é votar uma vez a cada quatro anos).

O governo ideal é, antes de tudo, o autogoverno. O governo autônomo é justamente a promessa moderna que, recauchutada e desgastada por séculos de individualismo, revoluções oportunistas e filosofia política imanentista e niilista, tornou-se simples egolatria descolada da realidade, a supremacia total do eu e suas normas contra o próximo e suas normas de convivência. Curiosamente, muitas comunidades medievais, com seus feudos, burgos, mosteiros e sistema paroquial, alcançaram um governo muito mais autônomo e favorável à comunidade do que prometeram as várias revoluções modernas.

Isso não significa que devemos retornar ao medievo. Uma solução mais inteligente deve estar na desconfiança das promessas de autogoverno próspero que destroem o senso de comunidade, e voltar a valorizar este senso fundamental.

Um bom começo é evitar a resposta fácil de culpar uma única e enorme entidade abstrata, o que nos leva a patinar em nossos problemas, sem nunca resolvê-los.
São duas as direções possíveis rumo à solução. Uma, é tornar o governo mais próximo do cidadão. A outra é fazer o cidadão mais responsável pelo governo. A primeira pode ser chamada subsidiariedade, e a segunda, de solidariedade. As duas direções são complementares e devem ser consideradas em conjunto: quanto mais controle dos meios de governo, maior o poder e maior a responsabilidade.

Um pouco de G.K. Chesterton

Uma maneira de tornar temas políticos menos enfadonhos é citar G.K. Chesterton, o grande escritor inglês que passou toda a sua vida adulta comentando sobre cultura, política, religião e economia, e um dos grandes formuladores do pensamento de economia política conhecida como distributismo. Em um de seus inúmeros artigos de jornal, Chesterton escreveu:

Os homens que o povo deveria escolher para representá-lo estão muito ocupados para assumir esse trabalho. Mas o político já espera por este trabalho. Ele é a pestilência dos tempos modernos. O que devemos fazer é deixar a política o mais local possível, e manter os políticos perto o suficiente para chutá-los. (…) Os aldeões que se reuniam sob a árvore da aldeia também podiam enforcar seus políticos naquela árvore. É terrível perceber que poucos políticos são enforcados hoje em dia.

Em outra ocasião, Chesterton faz o excelente aforismo:

Duvido que os melhores homens se dediquem à política. Os melhores homens se dedicam a porcos, a bebês e coisas assim.

Quer dizer: o princípio de um governo mais justo, para Chesterton, é o governo mais próximo possível do homem comum, ele sim de fato preocupado — porque é de fato responsável, isto é, foi-lhe incumbida a carga de responder — pelo bem estar das pessoas. Nossa democracia é representativa, significando que os que nos representam não serão, em quase todos os casos, pessoas devotadas ao que mais nos afeta, nossos negócios, nossas casas, nossos filhos. Devemos, portanto, garantir que elas estejam o mais próximo possível de nossas vidas e respondam por seus erros.

O menor cuida do menor

Subsidiariedade é um nome ainda incomum, porém não é recente. É uma ideia melhor desenvolvida na Doutrina Social da Igreja Católica, que abrange a visão católica acerca do bem-estar da sociedade, protegendo as pessoas em sua dignidade humana nos contextos político e econômico. A ideia de subsidiariedade aparece em primeiro lugar na encíclica Rerum Novarum, o documento fundador da DSI, escrito pelo papa Leão XIII:

19. Dissemos que não é justo que o indivíduo ou a família sejam absorvidos pelo Estado, mas é justo, pelo contrário, que aquele e esta tenham a faculdade de proceder com liberdade, contando que não atentem contra o bem geral, e não prejudiquem ninguém. Entretanto, aos governantes pertence proteger a comunidade e as suas partes: a comunidade, porque a natureza confiou a sua conservação ao poder soberano, de modo que a salvação pública não é somente aqui a lei suprema, mas é a própria a causa e a razão de ser do principado; as partes, porque, de direito natural, o governo não deve visar só os interesses daqueles que têm o poder nas mãos, mas ainda o bem dos que lhe estão submetidos. (…) Se, pois, os interesses gerais, ou o interesse duma classe em particular, se encontram ou lesados ou simplesmente ameaçados, e se não for possível remediar ou obviar a isso doutro modo, é de toda a necessidade recorrer à autoridade pública.

Resumindo: as entidades menores devem ser responsáveis pelas questões que nos afetam mais diretamente. Outra ideia importante: isto não significa que instituições maiores devam ser progressivamente esvaziadas até não sobrar Estado nenhum (ou mínimo).

Há muitos temas vitais que não podem ser resolvidos em reuniões de bairro: política energética, metropolização, rodovias e ferrovias, exportação, política monetária e cambial, prioridades de pesquisa e desenvolvimento, só para citar alguns. O mundo é complexo e o governo nacional tem muitas responsabilidades. Estado mínimo é um wishful thinking tão ingênuo quanto o Estado patrimonialista.

Não se trata de um processo que é residual, no qual cuidamos de tudo e o Estado fica com o que sobra. O raciocínio é o oposto: cuidamos daquilo dentro da nossa capacidade e o maior trata do que não conseguimos cumprir sozinhos. É complicado e injusto pedir para um chefe de família asfaltar uma avenida inteira. É irresponsável deixar que uma cidade, por mais importante que seja, dite os juros de empréstimo rural.

Tal escala de responsabilidade só é possível com solidariedade — termo mais conhecido porém pouco aplicado.

A solidariedade funciona em dois vetores: no âmbito menor (rua, bairro), implica em cuidar das pessoas próximas e interesses comuns ou conflitantes. No maior e mais abrangente (cidade, estado, nação), é a responsabilidade para com todos, é tomar decisões que respeitem quem não é seu vizinho de porta.

Em tudo, é essencial conhecer seu vizinho de porta. O que era natural nas cidadezinhas de nossos avós tornou-se bizarro, quase sociopata, em nossos condomínios de cidade grande. Porém, é um passo fundamental. O primeiro passo para aprender que um problema, ou uma solução, pode ser comum.

O poder político implica em responsabilidade, a qual resulta em dever de agir. Não espere que “o governo faça alguma coisa”, precisamente porque desejamos, como ideal, que o governo sejamos nós mesmos.

*Pedro Menezes é especialista em políticas públicas.

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