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Testemunho: contemplação e anúncio

Pedro Ribeiro*

A primeira leitura da missa do último domingo de Páscoa oferece uma perfeita síntese da relação Deus-Igreja-mundo. Com efeito, diz São Pedro, em seu discurso retirado dos Atos dos Apóstolos: “Deus ressuscitou Jesus no terceiro dia, concedendo-lhe manifestar-se não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia escolhido: a nós, que comemos e bebemos com Jesus, depois que ressuscitou dos mortos. E Jesus nos mandou pregar ao povo e testemunhar que Deus o constituiu Juiz dos vivos e dos mortos.”

Vejam que beleza. Evidentemente, o primeiro sentido da referida passagem é literal e histórico: Cristo ressuscitado não quis de modo algum manifestar-se, depois de redivivo, a todo o povo, indistintamente, mas apenas, e algumas vezes, durante cinquenta dias, aos discípulos e discípulas mais chegados, ascendendo depois aos Céus. Encarregou Nosso Senhor não a si próprio, mas a estes seus achegados da missão de comunicar ao mundo a Sua Ressurreição.

Como disse, eis o primeiro sentido, literal e histórico, da referida passagem, mas há nela uma profunda substância espiritual e simbólica, que se comunica conosco na atualidade. De fato, ainda hoje, e talvez sobretudo hoje, não é a todos que Cristo manifesta a sua Ressurreição, mas a uns poucos escolhidos e escolhidas. Ou não é verdade que a grande maioria dos seres humanos, mesmo nos lares cristãos, não passou o último domingo em suas casas apenas como um dia festivo, de comilança, de coelhinhos e de chocolates? Não que qualquer uma dessas coisas seja em si problema, mas quantos de nós efetivamente mergulhamos no mistério da Ressurreição e lhe demos a devida centralidade?

Ainda hoje, pois, manifestou-se o Ressuscitado “não a todo o povo, mas às testemunhas que Deus havia escolhido”, isto é, à Sua Igreja, “a nós, que comemos e bebemos com Jesus” – impossível não pensar aqui na Eucaristia, em que comemos e bebemos do Corpo e Sangue do Redentor. Mas este privilégio, este contato pessoal e singular com Jesus, traz consigo uma missão: anunciá-lo, testemunhá-lo ao mundo. “E Jesus nos mandou pregar ao povo e testemunhar que Deus o constituiu Juiz dos vivos e dos mortos.”

Deus se revela de maneira única e singular à sua Igreja, mas não para que ela fique ensimesmada, elitista e arrogante, mas ao contrário: para que ela, serva generosa, testemunhe o Ressuscitado e o comunique ao mundo inteiro, chamando todos à conversão.

Note-se aqui a importância da palavra testemunho, repetida um sem número de vezes nos Atos dos Apóstolos. Ora, testemunhar é em si mesmo um ato duplo, é contar ao outro o que se viu. Não se trata de inventar uma história. Mas de contemplar uma realidade e, a partir desta contemplação genuína, comunicar o que se viu aos demais.

Surgem, assim, como que espontaneamente, algumas reflexões para o nosso exame de consciência pascal:

1. Temos nós suficientemente contemplado o Ressuscitado, por meio da oração? Temos nos dado conta da graça especial que ele concede à sua Igreja, se manifestando a ela de modo singular? Temos comido e bebido com Jesus, como companheiro próximo, ou ele é para nós amigo distante, com quem só se trata às vezes? “Aquele que viu, dá testemunho e seu testemunho é verdadeiro; e ele sabe que fala a verdade” (João 8, 35). Mas e aquele que não vê? Ou que só vê às vezes? Sabe que seu testemunho é verdadeiro?

2. Como têm sido nossa postura pública enquanto Igreja? Temos nos portado de maneira prepotente e triunfalista, como donos da verdade (e não servos dela), olhando o mundo de nariz em pé, fingindo ter a pureza que não possuímos, escondendo nossa miséria e pecado ao modo dos hipócritas? Ou, ao contrário, conforme pede o Papa Francisco, somos “Igreja em saída”, que não abre mão de sua fé e de seus dogmas, pois sabe a Verdade que recebeu de seu Senhor, mas que se abre a todas as periferias sociais e existenciais, preferindo correr o risco de se acidentar pelo caminho do que morrer na autorreferencialidade?

3. Como têm sido a nossa postura pessoal e individual como cristãos? Temos vividos como homens e mulheres de corações ressuscitados, que passaram da morte para a Vida, do pecado para a Graça, do mal para o Bem? Aspiramos as coisas do Alto? Portamo-nos como cidadãos do Céu? Ou vivemos presos a futilidades, intrigas, consumismos, discussões inúteis e outras mundanidades? Estamos disponíveis aos outros em seus sofrimentos, sejam estes outros cristãos ou não? Vivemos a radicalidade do amor, do amor que, segundo o próprio Cristo Jesus, é o único e verdadeiro sinal pelo qual nos reconhecerão como seus discípulos? “Nisto conhecerão todos que sois os meus discípulos: se vos amardes uns aos outros” (João 13,35).

“Jesus nos mandou pregar ao povo e testemunhar que Deus o constituiu Juiz dos vivos e dos mortos”, mas este apelo à conversão só encontrará eco e sentido nos corações dos outros se eles virem em nós, não em nada extraordinário, mas na concretude de nossas vidas (em nosso jeito de trabalhar, de viver em família, de torcer pro time de futebol, de fazer memes) que há algo de diferente. Se a Vida Nova do Evangelho não se mostrar concreta em nosso rosto e em nosso corpo marcados pela miséria e pelo pecado, não haverá pregação bonita ou sermão exaltado que dê jeito.

Estamos encarregados pelo Mestre de uma missão: contemplar detida e diariamente o Cristo Ressuscitado, para depois, conforme o lema de Santo Tomás, compartilhar com o mundo os frutos dessa contemplação.

Testemunhar: ver e então dizer; contemplação e anúncio.

* Pedro Ribeiro é professor de Filosofia

Imagem: Fra Angelico, St. Peter Preaching in the Presence of St. Mark, c. 1433.

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