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Três encontros com Bernanos

Por Paulo Mendes Campos

Uma tarde, estava eu na redação de “O Diário”, quando surgiu Edgar Mata Machado, naquele tempo secretario desse jornal, trazendo os primeiros volumes da tradução que ele fizera para o “Journal d’un cure de campagne”. Eu conhecia Georges Bernanos apenas por informações e não lera ainda nenhuma de suas obras.

O Pe. Orlando Vilela, que se achava presente e que era velho admirador de Bernanos, pôs-se a ler em voz alta as primeiras páginas do livro: “Minha paróquia é uma paróquia como as outras. Todas as paróquias se parecem. As paróquias de hoje naturalmente.”

Não era, na verdade, o que se poderia chamar um grande estilo estritamente na acepção linguística desta palavra. Havia mesmo um certo descaso anti-flaubertiano pela perfeição da frase, as palavras se repetiam, a narrativa por vezes tornava-se acentuadamente arrítmica. O que me prendia aquela cadencia sincopada de fôlego irregular era o ritmo da vida, era o passo surdo de um homem através do mundo. Vinha-me a eterna sensação de já ter ouvido tudo aquilo, sentia-me diante daquelas palavras exatamente feito o moço que descobre o amor na face cheia de possibilidade de uma jovem. Me desculpem. mas foi bem o sentimento de ter descoberto uma namorada.

Comprei o livro na primeira oportunidade. Meus amigos também o fizeram. Durante muito tempo, Bernanos usurpou as nossas conversas de café e as apaixonadas discuss5es madrugada adentro. Depois, outros livros e a admiração crescendo à medida que o conhecia mais e o compreendia melhor.

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Diário de Um Pároco de Aldeia
  • Georges Bernanos
  • Publisher: É Realizações
  • Edition no. 1 (06/01/2011)
  • Capa comum: 288 pages

Veio o desejo de conhecê-lo pessoalmente, de procurá-lo no seu retiro de Cruz das Almas. E em abril do ano passado, partiu de Belo Horizonte uma caravana com direção à cidade de Barbacena. Éramos oito, todos moços, quatro deles beirando aí pelos vinte anos: Edgar Mata Machado, Aires da Mata Machado Filho, Jose Mendonça, Wilson Figueiredo, Helio Pellegrino, Otto Lara Resende e eu. Em Barbacena, ficamos hospedados num hotel, onde dormimos. No dia seguinte, um domingo, às oito horas, católicos e não católicos, rumamos para a missa onde esperávamos encontrar o grande exilado. Não o encontramos. Perguntamos por ele. Ninguém sabia informar nada.

— O senhor conhece Bernanos?

—  Não, não senhor.

— É um escritor.

— Não senhor.

—  Um francês.

— Ahl o francês, o “seu” Georges, conheço.

—  Sabe onde ele costuma ficar?

— Não senhor.

Demos uma busca, mas não encontramos o “seu” Georges. Tomamos, então, dois autos que nos levaram até Cruz das Almas. Na casa de Bernanos, somos atendidos por um rapaz muito alto, muito forte e imberbe. Esse moço nos conta em um horrível português que era brasileiro mas vivera sempre na França até que seu pai conseguira arrancá-lo de um movimento de resistência. Agora, era uma espécie de professor dos filhos menores de Bernanos. Referiu-se terna e admiradamente ao escritor: “Viver ao lado desse homem é estar aprendendo a todo momento”. Providencia-se para que se chame Bernanos, que estava realmente na cidade nos aguardando. Percorremos a casa, curiosamente dividida. O escritório de Bernanos é muito simples: um divã, a mesa e alguns raros livros numa prateleira, quase todos recentemente recebidos. Sobre a mesa, alguns dicionários e uma Cruz de Lorena feita de taquara. À cabeceira do divã, está uma edição da Bíblia.

Chega Mme. Bernanos. Seu rosto denota uma espécie fria de coragem. Conversa-se e ela nos conta coisas interessantes sobre a guerra. Fala na França com uma veemência comovente. Um de seus filhos está servindo num submarino inglês e há bastante tempo ela não tem notícias dele. Mostra-nos uma grande quantidade de jornais franceses clandestinos.

Depois de certo tempo, Bernanos chega, montado num cavalo enorme. Vem alegre, rindo, gritando-nos de longe. É a primeira vez que o vejo. Uma figura impressionante, sem dúvida. Tem uma cabeça particularmente bela e seus cabelos são de um branco prateado. Os olhos são de um azul límpido e faiscante. Bernanos se apóia em duas bengalas ao andar. Sentamos em torno dele. Nada mais há a fazer senão escutá-lo.

O almoço é servido em duas mesas. Bernanos fala longamente sobre Maritain, salientando a humildade e a simplicidade do filósofo. Expõe-nos sua teoria sobre educação, capaz de escandalizar até a um livre-pensador. Terminado o almoço (e não esqueço das bananas partidas mergulhadas em cachaça), voltamos outra vez para a “casa grande”. Bernanos nos lê um artigo seu contra Carpeaux. Uma de suas filhas liga o rádio. Ouve-se um samba e, sentado na cadeira, o escritor põe-se a caricaturar com muita graça as danças dos cordões carnavalescos.

Aí pelas seis horas, nos despedimos de todos. Bernanos queixa-se de solidão e lamenta que não fiquemos mais tempo. Voltamos a pé até Barbacena. Ao meio do caminho, Bernanos a cavalo apanha o nosso grupo e nos acompanha até a cidade. Aí, despedimo-nos definitivamente do grande homem.

O terceiro encontro deu-se no Rio. Na “Brasileira”, em uma hora de grande movimento. Bernanos estava sentado em uma das mesas escrevendo um de seus artigos políticos. Desta vez falou quase que exclusivamente de política. “Il faut examinar la verite poll-tique tous les fours. Interrompia a todo momento a digressão política para queixar-se do barulho. Mas quem fazia barulho era ele.

Revista a Ordem

Belo Horizonte, 14 de março de 1945.

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