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Um guia para refletir sobre “A balada de Buster Scruggs”

A balada de Buster Scruggs é um faroeste metafísico dos Irmãos Coen na sua primeira parceria com a Netflix. São seis curtas, narrados em forma de contos de um livro sobre o Velho Oeste, sua natureza e peculiaridades, que, no fundo, são pequenas histórias universais (porque locais), que desvelam as mazelas e encantos da condição humana, aqui especialmente vistos sob a perspectiva da morte. A película não deixa de ser um belo ensaio sobre a finitude humana e a morte, esta indesejada das gentes (Manuel Bandeira), sem dúvida, é o pano de fundo do filme e, o grande personagem misterioso dos contos. A circunstância do homem é marcada pela mortalidade. E os irmãos Coen foram fundo nisso.

Eis alguns apontamentos sobre os episódios:

A Balada de Buster Scruggs

O primeiro curta é uma comédia absurda e uma espécie de musical cheio de humor negro que aparentemente destoa do tom mais reflexivo dos outros episódios, mas guarda em seu subterrâneo um caráter meditabundo.

O cowboy cantor Buster Scruggs, apesar de toda a violência que recebe e oferta, tem a inocência de um palhaço (vaidoso palhaço que canta vitória antes do tempo)  num mundo rodeado de maldade e, ao final, espera entrar no lugar onde “os homens não são desprezíveis e não se rouba no pôquer”.

Os homens são assim, anfíbios: inocentes e vaidosos. A morte, mesmo vestida de negro,  joga luz sobre todos eles.

Perto de Algodones

Um ladrão de bancos vislumbra o poder redentor da beleza no momento derradeiro. Condenado à forca, vira-se  para o condenado ao lado, que chora copiosamente e pergunta sorrindo: “Primeira vez?” (como se a forca permitisse segundas chances). No entanto, ele já havia sido milagrosamente salvo de uma condenação, e o destino, inesperadamente, lhe dá uma “terceira vez”, quando avista, segundos antes do golpe final, o rosto de uma linda garota que lhe envia um sorriso benevolente do meio da pequena multidão que assiste à execução.

Poderia-se aplicar aqui o conceito de “serendipty”… Mas é simplesmente graça.

Vale Refeição

Este conto começa simplesmente com uma citação de Shakespeare:

“The quality of mercy is not strain’d, It droppeth as the gentle rain from heaven Upon the place beneath. It is twice blest: It blesseth him that gives and him that takes.

“A natureza da graça não comporta compulsão. Gota a gota, ela cai, tal como benévola chuva do paraíso’.

(IV,i,185, “O Mercador de Veneza”)

É a história de um artista deficiente, um recitador sem os membros superiores e inferiores, que é cuidado por um empresário, e é, ao mesmo tempo, seu ganha-pão. Com o passar do tempo, o interesse do povo pelo pequeno espetáculo diminui e a arrecadação (a famosa moeda no chapéu) vai minguando até o empresário optar por uma medida drástica…

O poeta, o artista da palavra, que, a princípio fascina o povo ( eis o poder da literatura, das artes, do teatro), passa fome. Paulatinamente, há uma dolorosa troca da arte pela divertissement, no sentido pascaliano do termo. O poeta que recita com arte e arrebata e a galinha que cacareja e diverte são símbolos fortíssimos. É impossível não lembrar aqui da frase do filósofo:

“Os homens, não tendo conseguido sanar a morte, a miséria, a ignorância, para se tornarem felizes inventaram de não pensar sobre isso” (Blaise Pascal)

A troca da arte pela diversão, do perene pelo efêmero tem seus frutos:

“E assim seguiram em frente, ao drama, a silhueta que se desfigurava, e, devido à galinha, foram esquecidos…”

“Em toda a vastidão de terra, ele não viu sinal do homem, nem obras do homem”.

Cânion do Ouro

Este episódio é marcado pela atuação arrebatadora de Tom Waits e é sobre reivindicar o que é seu, tomar posse da parte reservada para si com trabalho, suor e respeito.

Para mostrar um homem integrado com o cosmos e a natureza – a cena dos ovos da coruja é muito significativa – os Irmãos Coen filmaram paisagens de tirar o fôlego com fotografia impecável. A trilha sonora também é belíssima.

O garimpeiro é o protótipo do homem que chegou à velhice trabalhando arduamente para encontrar seu tesouro e está perto de ser abençoado. Refere-se ao bolsão de ouro que está procurando como “Mr. Pocket” e respeita-o, devolvendo à natureza as pequenas pepitas que vai encontrando pelo caminho e que ainda não são a sua graça. Ele quer a “suprema bondade” e não a mediocridade. É bonito ver a serenidade de quem chegou à maturidade, mas que é pequeno diante do mistério insondável: “eu sou velho, mas você é mais velho!”.

A única coisa que tira a paz do garimpeiro é alguém querer tirar de suas mãos a bênção de maneira sorrateira, observando covardemente enquanto ele derramava o seu suor sagrado para dar o golpe…

Afinal, a sua justa recompensa é sinal de uma recompensa mais gloriosa que receberemos para além deste desterro.

A Garota Nervosa

Esta história gira em torno de uma garota que caminha com uma caravana rumo a um futuro incerto: um casamento arranjado por seu irmão e protetor, que logo falece vítima da cólera. Ela é obrigada a buscar refúgio junto a um do líderes da caravana que acaba por lhe pedir em casamento.

O tema aqui é o excessivo e pragmático apego às regras (que pode acabar em tragédia). As regras não podem substituir a contemplação amorosa da realidade; foi isso que Alice – a “garota nervosa” –  não percebeu, presa nas suas certezas pragmáticas.

Em um diálogo, Billy Knapp, seu futuro esposo, parece desnudar a alma de Alice:

“A incerteza. Ela é adequada aos problemas deste mundo. Somente referindo-nos ao próximo podemos ter certeza… Acredito que a certeza naquilo que podemos ver e tocar raramente é justificável, ou nunca. De todas as eras, desde nosso mais remoto passado, que certezas sobreviveram? E, no entanto, nos apressamos para fabricar novas certezas. Em busca do conforto. A certeza é o caminho fácil. ‘Estreita é a porta… e apertado é o caminho.’ De fato. De fato.”

Os restos mortais

Cinco personagens rumo a um destino.

Este episódio é sobre o valor inestimável da vida refletida. Aprenda a narrar a sua vida na Terra porque você precisará disto quando chegar ao seu “hotel em Forte Morgan”.

Para quem não assistiu a dica d’O Camponês da semana (23/11/2018):

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