
Quando alguns amigos (dele) e (meus) lembraram que ocorria este ano o centenário de Jacques Maritain, ficamos em dúvida quanto ao mês e ao dia, pois os livros franceses nem sempre vêem munidos de uma cronologia biográfica, como já se está fazendo entre nós, e as enciclopédias só registram os anos de nascimento e morte. Foi quando Dom Leão de Almeida Matos, mais assíduo do Journal de Raissa, mostrou-nos, nas “folhas esparsas” que acompanham o livro, o seguinte parágrafo, sem data ele próprio, provavelmente de 1947, que nos fornece a que buscávamos: _ “O que o Senhor fez por mim: Em primeiro lugar fez nascer o menino Jacques Maritain em Paris, a 18 de novembro de 1882. Dez meses depois fez nascer a menina Raissa Oumançoff em Rostoff-sobre-o-Don, a 12 de setembro. Na data do nascimento de Raissa, Henri Bergson, com 23 anos, escrevia o Essais sur les Données immediates die Ia Consciense. Léon Bloy, nascido em 1846, tinha então 37 anos e escrevia seu livro sobre Cristóvão Colombo. O Pére Clerissac, nascido em 1864, contava 19 anos e entrava nos Dominicanos.”
Transcrevemos, de propósito, todo este registro, porque se refere justamente às principais personagens que constituíram o mundo de Jacques e Raissa Maritain, que ela tão bem retratou em seu livro As Grandes Amizades, um dos dez que eu gostaria de ter salvo comigo ao naufragar na ilha deserta…
Um pacto de suicidio
“Nossos conhecimentos (tinham-se encontrado na Sorbonne) estavam minados em sua base pelo relativismo dos sábios e o ceticismo dos filósofos. (. . .) A angústia metafísicapenetrando nas próprias fontes do desejo de viver, é capaz de tornar-se um total desespero e acabar em suicídio. (. . .) Se devemos renunciar a encontrarmos um sentido para a palavra verdade, para a distinção entre o bem e o mal, entre o justo e o injusto, já não é possível viver humanamente. Eu não aceita- ria uma tal comédia. Aceitaria uma vida de sofrimentos, mas não uma vida absurda. (. . _) Decidimos confiar ainda algum tempo no desconhecido; íamos conceder um crédito à existência, na esperança de que ao nosso apelo veemente o sentido da vida se revelasse, que novos valores se manifestassem tão claramente, que arrastassem nossa adesão total e nos livrassem do pesadelo de um mundo sinistro e inútil. Se essa experiência não desse certo, a solução seria o suicídio; o suicídio antes que os anos houvessem acumulado a sua poeira, e estivessem gastam nossas jovens forças. Queríamos morrer por uma livre recusa, se fosse impossível viver segundo a verdade.”
Foi então que vieram salva-los Bergson, Léon Bloy e o Pére Clerissac, justamente os três mencionados por Raíssa no trecho que citamos acima.
Rumo ao Absoluto

Bergson não teria recebido o batismo no fim da vida para não parecer trair seus irmãos de raça, humilhados, ofendidos e mortos pelo nazismo. Mas é certo que abriu com suas aulas – assistidas também por Carles Péguy, Ernest Psichari e tantos outros _ a frincha por onde entrou o primeiro raio de luz no sombrio universo que ia levando o jovem casal ao suicídio.
E Raissa escreve: “Alguém que eu conheço bastante (sem dúvida Jacques Maritain) escreveu mais tarde que o homem é um animal que se nutre de transcendentais. Em outros termos, Bergson nos garantia que tal alimento estava a nosso alcance, que somos capazes de conhecer verdadeiramente o real, de atingirmos pela intuição o absoluto.” E Raíssa conta como Jacques, em baixo de uma gárgula de gesso, comprada em Cluny e suspensa à porta da casa, escrevera em caracteres igualmente góticos este lema decisivo: Rumo Absoluto. Empresa de Demolições.
A Casa Luminosa
Ouvindo esse desafio, Deus ia colocá-los sob a guarda de quem se chamara nos títulos de dois livros, Le Pélerin de L,Abolu e Un Entrepreneur de Demolition: Léon Bloy. Antes mesmo das promessas do batismo, Jacques e Raíssa sabiam que, para construir, é preciso primeiro destruir o que em torno de nos, e sobretudo em nos, se apresenta como obstáculo… Graças a uma frase de Maeterlinck sobre La Femme Pauvre, o jovem casal decidíu-se a procurar o velho escritor que em breve tomariam por padrinho: “Se por gênio – dizia Maeterlinck – entendermos certas fulgurações em profundidade, La Femme Pauvre é a única obra destes dias onde há sinais evidentes de gênio.”
No dia 20 de junho de 1905 (vigília de Pentecostes, que não sabiam o que fosse), Raissa e Maritain escrevem a Bloye recebem esta resposta: “Se sois almas vivas, como suponho, este pobre homem dolorido já vos ama e gostará de receber- os”. E Maritain escrevera a respeito dessa primeira visita: “Logo ao transpor-se o limiar de sua casa todos os valores se deslocavam como por invisível clique. Ficava-se sabendo ou adivinhava-se que sÓ há uma tristeza: não sermos santos”. Nada de espantar, portanto, que menos de um ano depois, dia 5 de abril, León Bloy possa escrever em seu diário: “O milagre realizou-se. Jacques e Raíssa pedem o batismo! Grande festa em nossos corações. Mais uma vez meus livros, ocasião deste milagre, são aprovados, não por um bispo ou doutor, mas pelo Espírito Santo”. E acrescenta, no dia seguinte, em carta a Pierre Termier: “Eles haviam chegado ao extremo limite do deserto e pediam o batismo. Na sua ignorância das formas litúrgicas, pensavam que eu próprio pudesse logo batizá-los, uma vez que
Raissa jamais recebera este sacramento, e Jacques apenas um simulacro. Foi preciso explicar-lhes — com o coração transbordando – que, não havendo risco de morte e sendo fácil recorrer a um padre, seria necessário um batismo como a Igreja o confere…”
No dia 11 de junho, festa do Apóstolo São Barnabé, especial devoção de Léon Bloy, às 11 da manhã, não só Jacques e aquela a quem chamava “a metade de sua alma”, mas também Vera, irmã mais moça de Raíssa, recebem o santo batismo, tendo os Bloy por padrinhos. E Raíssa, até então angustiada, comenta: “Uma paz imensa desceu sobre nós, trazendo consigo os tesouros da fé. Já não havia mais perguntas, nem angústia, nem provação – mas somente a infinita resposta de Deus. A Igreja cumpria as suas promessas. É foi a ela que amamos primeiro. Foi por ela que conhecemos o Cristo”. Jacques, o filósofo, caía de bruços, como Bloy o profetizara em belíssima e breve carta, na “grande Casa luminosa.”
O Anjo da Escola

Do trio tão importante de que Raíssa nos dava as idades ao registrar a data completa do nascimento de Jacques, não falamos ainda do terceiro, que veio depois: o Pére Clerissac. Vinha ele coroar o trabalho dos dois outros, revelando aos neoconvertidos o mais alto florão da Ordem onde ingressara: Santo Tomás de Aquino. Jacques escreveria sobre ele Le Docteur Angelique e Raíssa, para crianças, LiAnge de I’École.
Dois meses após o Batismo passa o casal dois anos na Alemanha, onde Jacques, graças a uma bolsa-de-estudos, pretende aprofundar-se em biologia… Mas logo começam a entrever, eles que julgavam dever renunciar à filosofia, uma recuperação da Razão, de que a metafísica é a operação mais alta e essencial. E Jacques anota em seu diário: “Sabemos agora o que queremos, que é mesmo filosofar”. De volta a Paris visitam Solesmes, onde o Abade Dom Delatte, embora não muito a favor de diretores espirituais, lhes recomenda o Pére Clerissac, que os pôs, como dissemos, em contato com Santo Tomás. Foi aliás Raissa, convalescente, que travou primeiro conhecimento com o Mestre, enquanto o marido e a cunhada, para garantir o pão de cada dia, redigiam, para a Editora Hachette, recomendados por Péguy, um Vocabulário Ortográfico e um Dicionário da Viola Prática…
Logo em seguida, foi a vez de Jacques, que escreveria no prefácio à segunda edição da Philosophie Bergsonienne: “Era sobre a indestrutível verdade dos objetos apresentados pela fé, que nossa reflexão filosófica se apoiava, para restaurar a própria ordem natural da inteligência ao ser, e para reconhecermos o alcance ontológico do trabalho da razão. Afirmando-nos desde então a nós próprios, sem chicana ou diminuição, o autêntico valor da realidade de nossos instrumentos humanos de conhecimento, já éramos, sem o saber, tomistas. Quando encontramos a Suma Teológica, não opusemos obstáculo à sua luminosa correnteza”.
As grandes amizades
Notre-Dame! Jóia preciosa da beleza do mundo, de que rei, de que povo resgatado ornarás a coroa? Oh, que seja o Rei da paz e da justiça, um povo de humanidade e sabedoria! E que Deus te levante logo da tua grande humilhação!”
Uma viagem ao Brasil

Jacques e Raíssa – Deus seja louvado! – acabariam voltando a Europa depois da guerra. Mas, antes disso e da publicação de As Grandes Amizades, aconteceu a viagem ao Brasil em outubro de 1936. O Pen Clube, que só então era fundado no Rio, já existia em Buenos Aires e convidara Maritain para uma série de conferências. Alceu Amoroso Lima, seu discípulo, amigo e correspondente, consegue que o Filósofo, na viagem de volta, passe dois dias no Rio. Mas isto não ocorreu como fora previsto, e o próprio anfitrião o assinala no elegante discurso em francês, cujo início sei de cor e traduzo:
“A amizade, bem o vedes, é tão implacável quanto o amor! Nós e vós, tínhamos preparado um almoço, duas conferências, um verdadeiro festim de bárbaros. Novo Moisés, as águas vos salvaram…” Na verdade o atraso do navio só o salvou pela metade, pois acabou cumprindo quase o mesmo programa nas 12 horas que passou pelo Rio. Primeiro houve a missa no Mosteiro de São Bento, na capela do Santíssimo, celebrada por Dom Martinho Michler e dialoga-a em latim (o que era ainda novidade) por uma dezena de universitários, entre os quais o autor destas recordações, com sua farda do CPOR. Em seguida, conferência no Centro Dom Vital, ainda na velha Praça Quinze, sobe Ação e Contemplação. Mais tarde outra na Academia Brasileira de Letras, onde entrei então pela primeira vez, cujo tema era Freud. Entre as duas, um almoço no Lido, de que nos resta a fotografia, onde à direita do então Ministro da Educação, Gustavo Capanema, sentam-se Maritain e Afonso Penna Junior, enquanto à esquerda vemos Raíssa, sua irmã Vera, Alaíde Gans, Alceu Amoroso Lima e Robert Garric. Atrás, de pé, além dos poucos que não reconheço, como alguns professores franceses, encontram-se o poeta Augusto Frederico Schmidt, Miguel Osório de Almeida, Pierre Desfontaines, Octávio Tarquínio de Souza, Luís Augusto do Rego Monteiro, Hamilton Nogueira, Wagner Antunes Dutra, Henrique Maia Penido, Weimar Penna (ex-aluno de Maritain em Paris e hoje Dom lreneu), Antônio Camargos Rocha, Haroldo de Almeida Matos (hoje Dom Leão), Alvaro Milanês, Pedro Enout (hoje Dom João Evangelista), Lauro de Araújo Barbosa (hoje Dom Marcos), Sílvio Elia e o que chamávamos (não sei se nome ou apelido) Antônio Belo. Deste retrato, sobretudo entre os mais velhos, quantos já se foram! Entre esses, Wagner Dutra, sempre modesto, a esconder-se atrás de Hamilton Nogueira, mas tão discretamente atuante no Centro Dom Vital! Quase escondido, também entre Weimar e Haroldo, outro do mesmo estilo, mas felizmente ainda vivo para a alegria de seus amigos, Antônio Camargos Rocha. Entre tantos futuros monges não se encontravam, embora pertencentes ao mesmo grupo, os que já eram Dom Basílio Penido, Dom Clemente lsnard, Dom Inácio ccioly e Dom Crisóstomo Pacheco, já então no Mosteiro de São Bento. Fotografia de saudade, mas também de caridade na Comunhão dos Santos e de esperança no encontro da Ressurreição.
Um ausente ilustre

Na foto não se encontra também Gustavo Corção, ausência que mais me dói no coração, e que àquela altura não se convertera e talvez nem estivesse ainda lendo o filósofo, de cujas orientações políticas discordaria em seus últimos anos, mas que muito dependeu de Maritain, como assinala em seu primeiro livro A Descoberta do Outro, no capítulo Chesterton e Maritain: “Foi na obra desses dois autores que decorreu, de modo mais decisivo, o meu encontro com a doutrina cristã. (…) Assim, a primeira pregação cristã, que eu poderia ouvir na igreja mais próxima com palavras autênticas, veio-me através do humorismo e da filosofia, em dois livros escritos em Londres e Paris (…) Chesterton trouxe-me uma libertação, uma recuperação da infância, encheu-me da confiança que mais tarde, pela misericórdia de Deus, seria vestida de Esperança; Maritain trouxe-me a retificação da inteligência e encheu-me da outra confiança que se vestiria depois de Fé. (…) Com Maritain não brincava; lia-o porque Chesterton me dera vontade de o ler; lia-o como quem estuda, aplicadamente, sentado, de pés juntos, com os cotovelos fincados em cima da mesa. Faltava–me, como é hoje o caso geral, formação filosófica para entender com desembaraço; mas assim mesmo adivinhava de modo inequívoco que a verdade estava atrás da linguagem reta do filósofo. (…) Jacques Maritain é filósofo por vocação e vontade de Deus. Hoje muita gente usa esse título por decreto próprio ou da roda de admiradores; para isto basta ter escrito alguma coisa no tom vago e grandiloqüente das idéias gerais. (…) Jacques Maritain é um filósofo, num sentido autêntico, porque é filiado a uma escola, ligado a uma tradição, essa lei viva de entrega, sem a qual não existiria sequer a mínima coisa. (…) A maior parte dos pensadores do mundo vive convencida que a ênfase é a própria essência da filosofia e que a verdade é função de um tom de voz categórico e solene. Gabam-se de ser, como os banqueiros bem sucedidos self-made men, porque são, intelectualmente, filhos de pais desconhecidos.”
Frère Jacques, dermez-vous?

Após os anos de Nova Iorque, vieram os de Roma em 1945, quando De Gaulle nomeia Maritain embaixador junto ao Vaticano. De 1948 a 1960 está de novo nos Estados Unidos, onde morre a cunhada Vera, a quem dedica comovente capítulo em seu Carnet de Notes. Menos de um ano depois, já em Paris, morre Raissa, a 4 de novembro de 1960. Estávamos reunidos no Centro Dom Vital para comemorarmos, como de costume, o aniversário da morte de Jackson de Figueiredo, quando Alceu Amoroso Lima recebe o telegrama: “Raissa partiu hoje em grande paz”.
Jacques que, como Raissa, era oblato beneditino, vai morar em Toulouse com os irmãozinhos do Padre Foucauld, – aquele que dera a impressão a Jean Coteau (por causa do que trazia no hábito) de um coração a circular entre as visitas de Meudon. Jacques ensina filosofia aos lrmãozinhos (entre os quais acaba por fazer votos) e profere conferências como aquela sobre A lgrzeja do Céu. Lembra-nos que não só os santos canonizados ou canonizáveis, mas todos que lá se encontram (pensava sem dúvida em Raissa) podem ter conhecimento das nossas orações e interceder junto a Deus, sobretudo quando outrora unidos a nós pelo sangue, pela afeição, pelos ideais comuns. Assim podemos e devemos pedir a Jacques (que morre em 28 de abril de 1973) que Santo Tomás volte a ser realmente o Doutor Comum da Igreja. E que, para isso, a própria obra de seu discípulo Jacques, de que Antônio Carlos Villaça nos deu um excelente panorama neste mesmo Jornal (07/11/82), Jacques Maritain, um tomista “tout court”, seja novamente lida e meditada. Vamos reler o Filósofo. Mas não, como adverte o seu eX-aluno, Dom lreneu Penna, no sentido que se clã hoje à palavra “releitura”, pela qual fazemos os autores dizerem aquilo que desejamos…
Precisamos voltar ao primado do Espirito, jamais separar ação e contemplação, saber distinguir para unir. Por isso ousamos exclamar: “Frère Jacques, dormez vous? Sonnez les Matines, sonnez les Matines! – Din, dlen, don! Din, den, donl”
* Dom Marcos Barbosa foi um monge beneditino brasileiro e padre católico, escritor, poeta e membro da Academia Brasileira de Letras.
Publicado no Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 18.11.1982