Sergio de Souza*

Hoje recebi uma visita. Um menino me foi dado. Por alguns minutos, ou hora, que seja. Que é o tempo?
Com as parecidíssimas feições de Clara, o menino ficou olhando-me com olhos assustados e interrogantes. Parecia não saber o que estava acontecendo, como eu.
Não sou dado a visões, olho o que vejo e acredito no que toco. Deus fora, creio em quase nada que não veja. A fé para mim é um esforço inalcançável. Tentei ser crente. Na adolescência li Castañeda, Hesse, Roberto Freire, andei um pouco atrás do sagaz homem fumaça. Era a moda dos duendes. Tentei acreditá-los: anjos, duendes, salamandras, pixies, fantasmas, espíritos, tábua de ouija. Nada. Nem os fenômenos místicos interessantíssimos em cidades vizinhas, como o óleo que escorria pelas paredes da Igreja de Monnerat ou as aparições de Nossa Senhora em São Sebastião do Alto interessavam-me. Sem ter lido Nietzsche, era cético. Sou dos homens citados por Gonçalo Tavares em seu “Uma Viagem à Índia”: “Os homens, de facto, rapidamente desistem de acreditar em aparições, o que é um erro”. Tinha tudo para acreditar, como meus avós e pais, homens de alma aberta. Mas era um descrente. Talvez a única coisa que me fizesse olhar para cima fosse música. Por exemplo, o disco Astral Weeks, de Van Morrison. Aquela música, atemporal, etérea, aquela voz e instrumentos, tocados aleatoriamente, dando a impressão de que cada músico tocava ao próprio gosto, mas com certa ordem, ordem interior, que dava a tudo um sentido. Aquela música apontava de alguma forma para o além. Música metafísica, talvez mística. Música que parecia feita por gente habitada por um daimon que lhes ditava as coisas.
Fato é que era um descrente — cético continuo sendo -, até que tive minha própria experiência mística. Mas essa é outra história. Voltemos à cena.
Via ali o menino, em seus sete ou oito anos, e trazia um livro debaixo do braço. Olhando bem para aquele rostinho, transfigurado pela luz que atravessava a porta de vidro da cozinha, pensei: eu é um outro. Era outubro e lá fora era a praia. Ou o quintal. Não me lembro. Óbvio, quem me conhece sabe, eu tinha um elemento para começar a conversa: o livro. Tentei descobrir o título. Se tivesse a idade que aparentava, ou que eu julgava ter, era bem provável que não soubesse ler. Mas trazia o livro. Capa amarela, letras negras, grosso, um calhamaço. Para ler a capa, só chegando mais perto. Era quase certo do livro não ser dele. Seus pequenos olhos estavam fixos em mim. Cara de quem tinha fome, muita fome. Tive a impressão de que me pediria um pedaço de pão. Ou um copo d’água. Mas tirou o livro debaixo do braço e estendeu a mão, oferecendo-o. Paralisado, não pude pegar. Prendi a respiração. Foi um susto ver que ele se movia, real, e me ofertava o livro. Ainda não acreditava na realidade diante de meus olhos. Mas aquela era uma mão de verdade, que me oferecia um livro de verdade. Estendi também a minha e peguei o livro. Tive vontade de sair correndo…
Tive dúvidas sobre se Deus me enviava um presente. Ou se o presente era mesmo um presente, dado pela minha própria cabeça, um epifenômeno, ou pesadelo que emergia do meu subconsciente. Andava lendo muito naqueles dias. Podia ser simplesmente a realidade, nua, crua e dura e eu só querendo romanceá-la. Tomei o livro nas mãos e antes que pudesse me assustar, meus olhos caíram nas letras. A capa, amarela; as letras, negras. Bela encadernação. Edição de 2008. O título: Livro da Vida. Santa Teresa? Não, não havia nome de autor algum na capa.
Abri o livro ao acaso, como quem tira a sorte e comecei a ler. A cena descrita era um dos mais tristes episódios da minha infância, do qual já me havia esquecido e que me causava imensa vergonha. Daqueles que a estrutura mental faz questão de varrer para o subconsciente para que possamos continuar suportando viver, mesmo tendo passado por aquilo. A dor que causava era tão grande que parecia estar vivendo tudo de novo. As entranhas queimavam, os olhos ardiam, náuseas, vontade de desaparecer, de ser ninguém. Procurei novamente o menino, pois parecia estar noutra dimensão, transportado para um passado que adoraria esquecer. Fitei seus pequenos olhos. Olhos cheios de dor. Aparentava mais idade agora. Lágrimas grossas corriam. Parecia partilhar a imensa dor daquele momento comigo. De alguma forma, partilhava. Vida misturada com vida. Algo havia se estabelecido entre nós. Como se eu pudesse ler o que se passava em sua mente porque, na verdade, seus pensamentos eram os meus pensamentos e ele era a consciência de minha consciência. A dor daquele choro de menino era a minha dor de menino humilhado.
Ele estendeu-me novamente as mãos, para que eu o levasse a algum lugar ou fosse com ele. Eram mãos que convidavam. Seus olhos, de um negro melancólico, ainda destilavam lágrimas. Jamais esquecerei os olhos tristíssimos daquele menino. O jeito que me olhava. Fechei o livro, o Livro da Vida, e depositei-o novamente em suas mãos. O meu livro, que deveria permanecer comigo, o livro da vida, livro da minha vida. O menino virou as costas e atravessou a porta, como um espírito, ou um fantasma. E correu, como se quisesse que eu nunca, nunca o alcançasse. E eu não o queria alcançar. E não o acompanhei com os olhos, mas desviei-me para o mar, ou para a rua, ou para qualquer lugar que fosse, certo de que a redenção não acontece assim, de uma hora para outra.
***
Sergio de Souza é editor de O Camponês.