Lucas Mafaldo*

Já falei muito em Viktor Frankl. Acho que a ideia de que precisamos de um sentido para a vida é de uma praticidade genial. É o jeito mais eficiente de erguer alguém do chão e dar-lhe força para construir valioso.
Creio, aliás, que o sucesso do Jordan Peterson se deve muito ao fato dele está resgatando essa ideia.
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De certo modo, esse resgate da noção de sentido se tornou necessário porque estragamos a antiga noção de “dever”.
O clima cultural atual não permite que falemos seriamente em dever. A palavra gera automaticamente associações negativas: é um sinal de chatice, de frieza e até de autoritarismo.
O problema é que as pessoas passaram a interpretar “dever” como uma regra arbitrária, como uma espécie de mandamento que deve ser seguido “porque sim”. O mundo seria dividiria entre os obsessivos que seguem regras absurdas e os “espíritos livres” que não seguem regra alguma.
Porém, o que é realmente absurdo é tentar separar regras e consequências. Parece-me óbvio que ninguém vive nesses extremos. Todos temos uma noção do que é o melhor e tentamos alcançá-lo concretamente, no mundo real — ou seja, todos temos algum princípio que utilizamos como ideal para nos guiar em busca de determinados resultados práticos.
(Os acadêmicos, aliás, ajudam a espalhar a confusão quando começam a categorizar as escolas como “deontológicas” e “utilitaristas”, ou seja, presumindo haver esse abismo entre o mundo e os princípios.)
Portanto, devemos realmente jogar fora o caga-regrismo, mas não para trocá-lo pela mera porra-louquice. Há um caminho do meio: a busca concreta e pessoal pelo bem.

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Mas preciso falar mais sobre o outro lado da equação: a ausência de regras.
Preciso entrar em uma tema delicado — o qual, correndo o risco de gerar confusão, chamo de “inflação da liberdade”.
Como isso não quero dizer, nem por um segundo, que é possível ter liberdade demais. Eu diria, pelo contrário, que nossa cultura tem liberdade de menos.
O meu sentido para “inflação da liberdade” é outro: estamos usando um valor excelente… para questões onde ele simplesmente não se aplica.
Uma analogia para tornar as coisas mais concretas: “prazer/desprazer” é um ótimo critério para escolher o jantar, mas um critério inaplicável para saber se a geladeira está funcionando.
Do mesmo modo, liberdade é um valor importantíssimo, mas não dá para reduzir tudo a ele. Precisamos de outros valores. Uma quadro pode ser belo ou feio. Um procedimento, eficiente ou ineficiente. Uma decisão judicial, justa ou injusta. Aplicar “liberdade” a esses casos simplesmente não funciona.
No entanto, a cultura contemporânea progressivamente passou de uma ética liberal (onde a liberdade é um valor importantíssimo ao lado de outros) para uma ética ultra-liberal (onde a liberdade é o único valor) — e isso é um erro enorme.
Nessa nova ética, o único critério para uma decisão é se perguntar se a decisão foi voluntária ou involuntária. Nenhum outro critério deve ser aplicado.
É, enfim, um mundo sem beleza, justiça ou eficiência. Tudo se resuma à liberdade ou tirania.
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Preciso insistir nisso: nenhum dos parágrafos anteriores deve ser interpretado como uma ataque à liberdade. Dizer que ela não é suficiente não significa negar sua extrema importância.
Uma decisão voluntária é algo poderoso — é o ato pelo qual alguém concentra sua atenção, reune todos os dados que possui e lança sua perspectiva ao mundo.
Mesmo quando discordamos da decisão final de alguém, precisamos ter a prudência de considerar que a perspectiva do outro pode possuir algum elemento que nós não estamos enxergando. Respeitar a liberdade alheia, afinal, é um modo de respeitar a dignidade humana — significa perceber que o outro é, tanto quanto nós, uma fonte de inteligência e ação no mundo.
Dito isso, por mais poderoso que seja esse ato de liberdade, não precisamos presumir que ele sempre dará certo. Para usar o português claro: às vezes, as pessoas simplesmente fazem merda.
Não é porque uma decisão foi livremente tomada que ela não pode ser também covarde, mesquinha ou criminosa.
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A ética contemporânea está esquecendo de todo esse vocabulário. Ela percebe (corretamente) a dignidade da liberdade humana, mas esquece dos demais valores.
Em particular nos países desenvolvidos, há uma expectativa de que não devemos jamais emitir nenhum julgamento ou impor algum padrão de comportamento, pois é suficiente deixar que as pessoas escolham como viver que tudo ficará bem.
Em parte, esse critério é extremamente sensato: cada pessoa tem uma perspectiva única sobre sua situação, sabendo melhor do que ninguém seus desejos, suas capacidade e seus obstáculos.
Porém, levado ao extremo, ele se torna inviável: se a liberdade é o único valor válido, como vou decidir o que fazer com minha liberdade?
Sem ideais — isto é, sem uma imagem do bem que desejo alcançar — eu sou forçado a usar minha liberdade de acordo com meu estado psicológico imediato. Ou seja, eu irei fazer aquilo que me der vontade fazer naquele momento.
Em alguns casos, isso dá certo. Mas uma hora isso vai dar errado, pois nossos humores e desejos flutuam violentamente ao longo de um mesmo dia. Todos nós temos nossos momentos de preguiça, inveja, irritação e medo. Se formos guiados apenas pela nossa vontade imediata, uma parte enorme das nossas decisões será tomada por esses maus conselheiros.
É por isso que, para irmos mais longe, não podemos contar apenas com a liberdade: precisamos cultivar em nossa personalidade ideais mais elevados — a coragem, a força, a beleza, a justiça. Esses ideais nos permitirão atravessar os momentos de tumulto psicológico em direção ao que queremos realizar.
Não existe carreira, obra ou relacionamento que não exija uma dose de sacrifício. Uma geração sem ideais é uma geração sem realizações. Por esse motivo, essa ética ultra-liberal pode terminar gerando pessoas deprimidas, que acabarão por se voltar contra a própria liberdade.
E, de novo, creio que é por isso que o Peterson está fazendo sucesso. Uma nova geração está percebendo que não adianta ser livre: precisamos também de uma nobre causa pela qual lutar.
O sentido nos ergue acima de nós mesmos.
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*Lucas Mafaldo é pesquisador.